segunda-feira, 30 de julho de 2012

CAPITAL (IN)VESTIDO


Não é de cambraia, tampouco popelina,
é mais o tipo de riscado de qualidade má,
ou seja, o que parece nobre, coisa fina,
não passa de forro de oculto tafetá.


Faz-se anunciar em tules e brocados,
e passa por fidalgo pano ou pura lã.
Não é mais que fios entrelaçados
de mais-valias dum tecelão ou tecelã.


O mesmo nos privados panos intestinos:
badaladas bolsas e demais adornos,
bonés, chapeletas, adereços bovinos
e nessas passerelles (in)vestem, os cornos.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

TABULEIRO

              Primeira publicação de João Corvo em Novo Jornal de Cabo Verde, em 6/2/1975



Em terras de Tabuleiro as coisas não corriam bem… O Rei fazia questão em que a sua corte tomasse as rédeas do país e com ele levasse por diante o famigerado plano do “absoluto silencioso”.
Do outro lado, porém, um grupo cerrado de Peões olhava-o de soslaio, como se lhe quisesse mostrar a sua presença.
Nada no entanto modificava a ideia do Rei, que teimava em avançar no caminho aberto pela sua corte.
A Rainha, dois bispos e um Cavalo serviam-no nas longas avançadas. De jogada em jogada iam deixando marcas do seu cunho.
Aflitos pela loucura do Rei, os Peões apelavam-lhe para que parasse, que os ouvisse, que a derrota estava iminente.
Mas o Rei acoitava-se nas Torres e, brandindo a espada de tábua inoxidável, ameaçava-os com os pântanos que cercavam as terras de Tabuleiro
Os Peões á que não se ficavam. Avançando devagar, cautelosamente, impediam aos poucos a ira do Rei.
Certo dia o Rei acordou com um fabuloso plano em mente (os planos do Rei eram sempre fabulosos): avançaria sobre os Peões inimigos mais destacados, encurralando-os nos sótãos de Tabuleiro e, acompanhado por Peões servidores, apanharia de surpresa as linhas contrárias, pensava, destroçando-as.
No seu dizer, os Peões inimigos avançados “constituíam uma séria ameaça para as terras de Tabuleiro e para as comunidades estrangeiras”…
E assim fez: na manhã seguinte pôs o plano em marcha, infiltrando-se nas brechas deixadas pelos Peões inimigos avançados, sobrepondo-se-lhes, atirando-os para trás.
Má sorte: os Peões servidores nada sabiam de Tabuleiro e avançaram estupidamente às ordens do Rei, agora apoiado por dois opulentos Cavalos.
Facilmente, os Peões que antes olhavam o Rei de soslaio, se infiltraram nas suas fileiras. Todos os dias chegavam notícias de baixas, não só de Peões servidores mas, pouco a pouco, das mais importantes figuras da corte.
O Rei já não dormia. Passava as noites magicando planos (planos fabulosos…) na sua magistral poltrona de suma-pau. Por mais ideias que tivesse não via maneira de se livrar de triste sina.
Consultou sábios e bruxos – os melhores que Tabuleiro tinha – cuidando que o mal passaria com profecias, mezinhas, manipansos e demais ciências ocultas, mas em vão.
Experimentou todos os truques, pensou ainda em soltar os Peões inimigos que encurralara nos sótãos, temendo ser vítima de uma terrível praga rogada pelos ex-Peões. Mas não, nada deu resultado e a soltura dos ex-Peões poderia ser perigosa.
Novamente o sol bateu nos seus olhos vermelhos e abertos. Agora não conseguia mesmo dormir. Pensamentos estranhos assaltavam-no dia e noite, os papéis amontoavam-se na secretária. E um silêncio, um silêncio térreo. Nessa manhã apercebeu-se que estava sozinho. “Nem um solidário Bispo”, pensou. E foi nessa altura que lhe ocorreu a ideia serôdia de se converter ao catolicismo. Assim ficaria preservado dos males do mundo e muito em especial dos Peões contrários que, olhando-o já de frente, avançavam a passo firme. Era tarde.
Uma noite o Rei viu-se cercado por uma multidão de Peões que, numa gargalhada uníssona o fizeram estremecer de pavor.
Correu de sala em sala procurando aqui e ali uma trincheira onde se pudesse acoitar. Nada. Só papéis, papéis e a sua espada de tábua inoxidável. O rosto do Rei era já uma papa meio suor meio pau, que lhe conferia um aspecto angustiante. As mãos encrespavam-se-lhe num gesto de súplica. O Rei estava moribundo. Estrebuchava no chão como um peixe fora de água. O olhar firme dos Peões contrários queimava-lhe os últimos pensamentos. Quedou-se na manhã seguinte com um laivo de cólera nítido entre os dentes e um plano ainda fabuloso por concluir.
O Rei esquecera-se que embora rei, só podia avançar uma sala de cada vez…



terça-feira, 24 de julho de 2012

A UNIDADE DA VIDA


Tem mais ensinamentos uma brisa agreste
que se intromete pela bainha da camisa,
fazendo o peito estremecer,
que mil afagos de quente aconchego dos amigos,
por mais ternos e solidários que sejam.
Mas não existe vida capaz de suportar
apenas a amizade, nem existência
sempre exposta à crueza do vento.
A vida é o resultado da luta diária
entre o que magoa e o que conforta.



domingo, 22 de julho de 2012

ALFAZEMA

OFERTA


trouxe-te

um beijo…


            no bolso



Pedro, 3 anos


 
A modesta haste de alfazema
fez-me companhia o dia inteiro.
Primeiro, um tanto crespa
em todo o cálice azul-violáceo,
depois, à medida das minhas carícias entre os dedos,
foram emergindo pequenos borbotos
que se soltavam da planta,
deixando uma fina penugem acariciar-me, suave.
A dádiva da haste de alfazema veio depois:
tinha os dedos lesos
eram veludo contra veludo quando deles dei conta.
Cheirei-os e era a veludo que cheiravam.
- Veludo não é cheiro, dizem-me.
- É! Veludo é cheiro e perfume
quando em troca de nada nos beijam.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

DORES DO MUNDO


De que me queixo? Do mundo?
Que culpa tem essa esfera azul e magoada?
Mais de mil deuses poisaram
na velha nogueira do meu quintal.
A nogueira e o quintal já lá não estão.
Os mil deuses, esses, julgo que ainda dormem
no vazio do quintal e da velha nogueira,
como é seu costume;
baloiçam-se para se sentirem suspensos,
como é seu gosto;
zumbem na consciência dos homens,
como é seu ofício.
O lugar já só existe na minha memória – disso me queixo –
Se a ele me refiro ou penso
apenas a mim me compraz ou magoa
conforme as dores do mundo.

terça-feira, 17 de julho de 2012

MORTE SANTA


Haverá a morte de dar notícia.
É com esta aparente contradição
que as dores, usando de malícia,
cumprem o que é a sua condição.


Doem, moem e, não poucas vezes,
aliviam para de novo magoarem.
Algumas são matreiras, soezes:
arraigam em silêncio sem se anunciarem.


E quando as favorece a condição
do corpo sem sintomas ou suspeitas,
já não há comprimido ou injecção
que sare a dor das vítimas contrafeitas.


Então, devota, a morte dá notícia:
alvitra o beato descanso eterno
e impõe com autoridade de polícia
de duas uma: o céu ou o inferno!?


E feito o deve e o haver da vida,
se a conta dos pecados está por fazer,
seja qual for a extrema via decidida,
não resta mais à dor senão morrer.

domingo, 15 de julho de 2012

PÉ DE CONVERSA


Com um pé se diz presente
ao pé de qualquer que seja,
com pé atrás se está ausente,
sempre em pé, onde esteja.


Se mete o pé é por azar,
ninguém o faz por gosto
e se o pé ficar no ar
já verdade não é suposto.


Faltar o pé é mais profundo:
perde-se em menos de nada
o pé, a mão, o mundo,
excluindo quem bem nada.


Aos pés juntos é diferente,
venha lá o mais pintado:
o mais comum entre a gente
é, de pés juntos, deitado…

sexta-feira, 13 de julho de 2012

ARTE DE MAREAR


Maré alta, fiz-me ao mar,
no miolo das ondas, sem pé,
para saber como é
um pé de sorte, a preia-mar
sem mesmo saber nadar,
sequer na maré baixa
e muito menos usar
camisola de alcaixa.

Maré vaza da vida
em mar parado, matreiro,
sem arte de marinheiro
de sete vidas vestida.
O bote está de partida,
bem no alto, na amurada,
no adeus de despedida,
não é partida, é chegada.

O bote partiu mar adentro,
tomou agulhas e rumo,
todo de tremuras e fumo.
Apenas resta o vento.
E no centro, bem ao centro
aí estou, ainda de atalaia,
acenando para dentro,
sem nunca sair da praia.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

ARVORELA


Árvore de sol, frutos de luz,
vento que perturba e zela
e demais sedes a que induz
o afogo da pálida aguarela.


Apesar disso vive, resiste
e não se entrega à sorte,
que o tempo a tudo assiste
impávido, mesmo à morte.


O tempo aqui é o pão
e a árvore faz de conduto:
sem terra, um pouco de chão,
não há vida nem há fruto.

domingo, 8 de julho de 2012

CORPO DE POEMA

Criei este blogue em 24 de Março de 2009 com o intuito de divulgar sobretudo os poemas que vão ficando órfãos (não editados em livro). Resultado: 570 publicações, 839 comentários (que retirei há já algum tempo), mais de 50.000 visitas (o counter das bandeirinhas no rodapé da página inicial só foi adoptado em finais de 2010). Divulgar os poemas que me iam surgindo foi assim o objectivo principal. Entretanto, por razões de força maior que só eu estou em condições de entender, manifestou-se nos meus poemas um estilo diferente. Abandonados os “estilos” mais incipientes dos primeiros livros e o “coisismo” dos anos 80, o modo de escrever tornou-se mais consistente e, ao que julgo, definitivo. Não tenho nome para lhe atribuir ou, dito doutra forma, ninguém lhe outorgou qualquer engagement., como normalmente acontece nestas situações. Não falando na ficção em prosa de Mar de Pão e Súbita Floresta, no início deste ano de 2012, um novo estilo poético veio moldar-me a arte de construir os meus poemas. Não foi suficientemente forte para que o adotasse, mas interessante para que o mantivesse em paralelo. Criei por isso um heterónimo – não se trata de pretensiosismo, mas da necessidade de separação das águas – que, em boa verdade, já existia desde os tempos de Cabo Verde, no Novo Jornal. Falo de João Corvo, que tem vindo a publicar em Corpo de Poema com alguma regularidade. Agora, passados 60 anos de vida e 40 desde a edição do meu primeiro livro de poemas, achei oportuno (o critério é meramente estatístico) publicar os cinco poemas mais vistos no blogue. Agradeço aos meus leitores a atenção que sempre quiseram dispensar-me ou, como dizia um velho merceeiro que conheci há um par de anos, voltem sempre!


ESTRELA DO NORTE

Há um corte
entre o dia e a noite
vigiado pela estrela do norte

augura boa sorte
este ponto que me persegue
ainda a estrela do norte

quase sinal de morte
é um quieto silêncio
e apenas a estrela do norte.


DO AMOR

Que é do amor o rumo que nos leva
por desertos de areia e pedra dura?
E que é daquele outro que releva,
mas que o próprio amor não cura?

Que é do amor que sangra e dói,
que por ser amor é seu oposto,
padece de vontade e não corrói,
nascendo em cada dia já sol-posto?

Mas se o amor é a água que sacia
de um sorvo toda a sede presumida,
é também o que seca de agonia
por dentro e de forma consentida.

Corrompe para viver e, por ironia,
morrer de amor é como ganhar vida.


ROSMANINHO

Rosmaninho, companheiro
de tristezas e alegrias,
dá-me a mão, mas primeiro
vem comigo à romaria.

Teu cheiro é a matriz,
como se fosse uma senha:
quando te levo ao nariz,
lembra-me a campina d’Idanha.

És, no fundo, o caminho
que me conduz mais além,
na esperança de ver, rosmaninho,
em Idanha a minha mãe.

ROSA TREPADEIRA

Olha a rosa trepadeira
tão sensual e melosa,
pisca-me o olho, brejeira,
estás a abrir c’ma rosa…

Novelinhos de algodão
são, rosa, os teus botões
que, com tal palpitação
me sugerem corações.

Trepa rosa trepadeira,
vai subindo para o céu,
que o meu olhar é cegueira
quando se cruza no teu.

REMISSÃO

Agora vejo o rubor do teu rosto,
a aurora boreal do teu olhar.
Vejo açucenas e fogo posto
queimando-me dentro e devagar.

E uma centelha de luz e flama
fulmina-me. Fico cinza e nada,
fumos, pó, restos de chama;
um chão estéril após a trovoada.

Ainda assim sou lisonjeiro,
como pé de água sobre brasas:
detono as veias e, prazenteiro,
troco as minhas armas por asas.



sexta-feira, 6 de julho de 2012

RATOS


O rato corrompe e rói por ofício
e génio, ditame de sobrevivência.
Está-lhe no sangue, na essência,
..............não é vício.


Esperto, rapina uma, outra vez
e volta ainda a correr o risco,
mas por cada um que é visto
..............há três.


Outros, de casta menos comum,
ratazanas que nos infestam,
por cada três que molestam
..............há um


que se aproveita e come,
esburaca, extorque duma penada,
desabriga e mata toda a ninhada
..............à fome.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

DO CÃO E DO LOBO


Sabemo-lo, conhecendo a natureza,
mas não será demais dizer de novo:
ao eleger entre predador e presa,
não é por uivar que o cão é lobo.


Porém, vista tese por outro lado,
temos que, pela mesmíssima razão,
por mais que o lobo dê ao rabo,
não é, nunca será um cão.


Lobo é lobo, cão é cão
e ambos, macacos de imitação.



domingo, 1 de julho de 2012

MACACO EM FLOR



No proclamado jardim
de que é Portugal esplendor
nasceu esta flor, enfim,
um macaco feito flor.


Quem serão os progenitores
nestes canteiros velhacos:
jardineiros amadores
ou é obra de macacos?


Mais havia para dizer
de tão profícua semente
não fosse ela condizer
com as fuças de tanta gente.


Uns candidatos em flor
com apelo a pais e avós;
outros, sem qualquer pudor,
macacos como nós.


Ainda mais sofisticados:
gaspares, coelhos, cavacos,
esses não estão mascarados;
são macacos, são macacos!