sexta-feira, 30 de maio de 2014

CARROSSEL


Comprámos cetins e borcados,
partimos tostões em mil bocados;
e à mesa demos carne com azeite
p’ra fazer as vezes de banquete.

Gritámos rua àqueles do fascismo,
daquele, civil, e do outro catecismo,
que a vida nos tinham feito em fel,
e voltámos de novo ao carrossel:

bancos de rodapé, cadeiras soltas,
puseram-nos a cabeça às voltas
p’ra  tornamos à amarga sopa,
agora fornecida pela europa.

É tempo de mudar de romaria,
de santo e de social democracia,
meter os tarambecos na bagagem
e…” nova corrida, nova viagem”!

quarta-feira, 28 de maio de 2014

VOLTAS


Não é normal que a gente
passe a vida a pedalar
sem ver o pelotão da frente
par a par.

Não é justo o sol presente
que, em tese, é suposto
ser de toda a gente
e, uma vez à frente,
já é sol posto.

Pedalamos à nossa maneira:
da frente para trás,
de trás para a dianteira,
a mostrar como se faz,
dando gás na bicicleta
com os olhos postos na meta
e os pés na pedaleira.

domingo, 25 de maio de 2014

ÀS VEZES UM MAR


Há dias em que um mar em mim se revolta;
outros, em que adoça como um favo de mel…
Há dias em que o mar que invento à solta
não é mais que um rascunho em papel,

seco, sedoso embora, mas seco como palha.
Banha-me falsamente, cobre-me de iodo,
faz-me naufragar quando calha
e atira-me contra as rochas de mau modo.

E o mar sou eu, quase nunca navegável,
à vez revolto e calmo; denso e transparente,
que tanto pode revoltar-se como ficar estável,
próprio de sermos mar e sermos gente.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

AS COISAS SIMPLES

.
100.000 visitas, para um blogue de poesia, com a “agravante” de os textos serem todos da minha autoria, não me parece nada mau…
O poema que hoje divulgo (As Coisas Simples), evocando um passado sem grande sobressalto,
não é mais do que a metáfora do tempo que vai passando sem muitas vezes darmos conta, mas que passa inexorável, como passaram as cem mil visitas em Corpo de Poema.
Obrigado a Todos.

A gasta varanda de ferro forjado persiste
desde o tempo em que, debruçado no peitoril,
deixava o gato adormecido (já não existe),
aproveitando o último raio de sol primaveril.

Na alameda, a mesma gente, vista de cima,
gente a quem raramente desvendava o rosto,
quase sempre à pressa, quase sempre anónima,
sem nunca saber se sorria, se o seu oposto.

À vezes ladravam cães para desassossego
do bichano: abria um olho e, persentindo-me ao pé,
tornava silencioso ao morno aconchego
sem qualquer necessidade de ir dar fé.

Não faziam falta as horas porque eu nada esperava;
via passar todo o tempo, toda a gente num frenesim
e eu (e o gato) debruçado na varanda imaginava
que o tempo, visto de cima, não passaria  por mim…

segunda-feira, 19 de maio de 2014

ACTO(R)POLÍTICO


Um mau actor não é um bom político.
Um mau político não é um bom actor.
Um bom actor não é um mau político.
Um bom político não é um mau actor.

Um bom político é um bom actor.

domingo, 18 de maio de 2014

UTOPIA


Finalmente posso voar

preciso só abrir os braços
como num reencontro de amigos
e de breve impulsão do vento

as asas virão depois

sexta-feira, 16 de maio de 2014

UM VELHO SOM


Um som já velho, reciclado,
vira o disco,
não sei onde ouvi isto.

Fede. Velho e relho, insisto,
percorre o tubo enviesado
este som antepassado.

Que som este, estafado,
de notas falsas, um misto
de purgatório e Jesus Cristo.

Como a sensação do já visto:
na música o mesmo fado
e na letra o caldo entornado.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

ANDORINHAS


Eis as andorinhas de braços cruzados.
Para quem não sabe, deixo aqui a dica:
"filhos criados, trabalhos dobrados",
para elas é norma que não se aplica.

Estão como quem toma balanço,
refasteladas ao sol que lhes dá genica
e a combinar a hora do avanço.
Não tarda nada, nem uma só lá fica.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

NÃO ME OFEREÇAM NADA


Para que quero um remo,
(ventos e marés não temo)
se vivo em terra enxuta;
para que quero um par de asas,
(não plano sobre as casas)
 se não sei voar?
deixem-me, persistindo, com a minha luta
e caminhar, caminhar…

sábado, 10 de maio de 2014

SOLIDÃO


Procurei durante algum tempo uma imagem para a solidão.
Reli cartas de amores não correspondidos,
meninos pedindo esmola, trilhos antigos nunca mais pisados,
frutos apodrecidos e por colher, folhas amarelecidas
e, de repente, dei comigo numa rua miserável,
provavelmente consumida por uma guerra recente,
onde caminhava , de olhar vago,
em busca de um nada que pudesse ser alguma coisa,
um homem, e aos seus ombros um cão, de olhar igual
e de demanda afim. Pensei: esta é a imagem que procuro!
Errei em toda a linha. A solidão existia apenas em mim…
Eles estavam ambos em boa companhia.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

SEMIOLOGIA



Para meu deleite
quero que saias,
isto é,
que te levantes
e saias.
Espera, melhor:
para meu deleite
quero que levantes
as saias.


quarta-feira, 7 de maio de 2014

ENGENHO


Que raio de engenho!
Rodar, não roda
e, olhando ao desempenho,
é coisa fora de moda.

A quem terá lembrado
um aparato assim,
que de andar parado
me dá voltas a mim…

Mó? Lagar? Torniquete?
Coisa para inglês ver?
Por certo algum joguete
apenas para entreter.

Lembra-me o governo d’agora:
com a pompa e o penacho,
ares de interesse por fora,
miséria na mó de baixo!

segunda-feira, 5 de maio de 2014

PRUDÊNCIA


Falei sim de bravura
para enfrentar a fera,
mas não falei de loucura,
que exaure e desespera.

De coragem, quanto baste,
de passo certo e  seguro,
não vá acabar em desastre
o que era p’ra ser futuro.

sábado, 3 de maio de 2014

A CASA



Não mora quem morou antes,
antes mora quem não morou:
mora a memória que dantes
não se lembrava e mudou.

Mudou para outro lugar
longe ou ao pé da porta.
Mas se a memória mudar,
quem mudou não se recorda.

Recorda que em tempos viveu
longe ou ao pé da porta,
onde o tempo ao tempo deu
e a lembrança não importa.


Agora a casa está morta.