quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

SOL MORTO, SOL-POSTO


À tardinha, quando finalmente cheguei à falésia, já os adoradores do sol-posto se perfilavam, regulando as objectivas e equilibrando os tripés para fixação das máquinas fotográficas. Em suma, preparavam-se ansiosos para o melhor ângulo do ocaso diário.
Ocorreu-me a rábula humana sobre o elogio exagerado dos entes falecidos, esses “santos inolvidáveis” mas não era para ali chamada tal circunstância. O meu propósito era unicamente apreciar a profundidade da falésia e daí receber inspiração e tranquilidade que precisava.
Não seria desta vez, pensei. O aparato de fotógrafos, que quase se acotovelavam, tal era o frenesim; os cliques de som metálico das respectivas máquinas; toda a inquietação daquele local iria trair os meus planos e a minha atenção ficou colada ao espectáculo insólito oferecido pelo magote de adoradores do Sol.
O aparente movimento da grande estrela, obrigava-a a mergulhar no oceano imenso. O horizonte azul depressa se tornou vermelho, incandescente. O Sol afundava-se no que, ironia da beleza, sugeria a própria morte. Sabia-o eu e sabiam-no aqueles que se preparavam para o assombramento da falsa morte ali anunciada. Na verdade, amanhã haveria de reaparecer no lado oposto ao que agora desfalece.
As máquinas fotográficas dão início aos “disparos”, parecem grilos roucos em uníssono. O por do sol fica assim guardado para cada um, para memória futura. Avidamente.
Olhei a falésia até ao mar, que se lhe arrimava com brutos modos e se desfazia em espuma branca, casta e inocente. O encantamento vertiginoso dessa imagem obrigou-me a segurar os restos do Sol que se despedia no horizonte longínquo, contagiado por aquela estranha enfermidade de também querer ter um sol só para mim e que, moribundo, já não nos pertencia.
Por uma vez prevaleceu a justiça. Naquele instante o Sol morria para todos. 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

PAIXÃO


Escrever amor, aos ais,
com a mesma tinta preta
causa danos colaterais
no aparo da caneta.

Deixa a letra tremida,
vá lá saber-se a razão:
são os mistérios da vida,
as lágrimas do coração.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

SABE DO CONVENTO QUEM ESTÁ LÁ DENTRO


Vento só com frio
frio só convento
com vento frio
com frio por dentro

Convento frio
o que vai lá dentro
com vento frio
da porta p’ra dentro

De que serve o vento
frio que importa
o que vai dentro
a quem bate à porta

Há gente no convento
com vento frio
nem um só lamento
nem o vento pio

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

RECOMEÇO


Não guardei azedas nem bugalhas. Ficaram
onde as colhi. Trouxe os rios, os dias de sol,
uma ou outra nuvem prestes a debandar
e o canto de um melro escondido numa laranjeira.

Para minha surpresa, não eram já os velhos calções
que trazia vestidos, mas as calças de inverno,
feitas de outras usadas pelo meu pai durante anos,
com os bolsos ainda cheios de cordéis e de sonhos.

Dei pouca importância à invernia, à chuva.
Talvez por isso, não lamento o que posso colher
de novo e sem pressa de fugir aos cães da horta.
Esperarei pelo sol e depois volto a ser criança.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

DOS CONTRÁRIOS


Há anos que se mantém a luta
–parece-me uma eternidade,
suportando a força bruta
da lei da gravidade.

Mais o ozono com buraco
e as alterações do clima,
sem nunca dar parte de fraco,
só pesa o que está por cima.

Acontece com o moinho
que faz do trigo capacho,
moendo-o devagarinho
por estar na mó de baixo.

Mais exemplos? Quantos mais
enlaces e desenlaces,
batalhas austeras, reais,
a perene luta de classes.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

AS LEIS


As leis são uma estranha liberdade que me prende.
A todas revogo e levo à frente o meu caminho:
as que fazem de mim prisão e as que me amarram
e deixam inúteis e cativos todos os sentidos. 

Não há leis que me façam sonhar e eu lamento-o!
Bocejo nas entrelinhas e tomba-me a cabeça
nos subentendidos e vazios que elas têm.
Se não me tiram o sono, sonhar não fazem.

As minhas leis são papeis em branco,
que vou escrevendo e rasurando com o tempo.
Normas, prescrições e outros mandamentos
deixo para quando já não tiver de os cumprir.

As leis envelhecem-me, tornam-me rabugento;
cumprem-se para estas maldades legais…
Quando me querem agradar, esperneiam, mimam,
se não me fazem rir, sorrir não fazem. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A BRINCAR, A BRINCAR...


- Ficas à baliza!- Não sendo voluntário,
era afronta, cortesia envenenada:
ficar, ficava, caso contrário
tinha a brincadeira estragada.

A crueldade, já então sofisticada,
aceite para evitar abrolhos,
era como dizer na apanhada:
és tu a tapar os olhos.

Hoje rimos da chacota
mas tal como crianças de outrora,
até ao bater da bota
ninguém quer ficar de fora…

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

PEDRAS PRECIOSAS


Colecciono pedrinhas amarelas,
vermelhas, azuis e demais cores,
parecem um painel de aguarelas,
um prado coberto de flores.

As amarelas são safiras douradas;
as vermelhas, lágrimas de rubi;
as azuis, água marinha, roubadas
ao sal das águas onde nasci. 

As restantes são preciosas
para mim, que as tenho guardadas
são pedras fieis e perigosas,
tão certeiras como pedradas.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

ITINERÁRIOS


O rio corre no leito,
transborda p’ra correr mais
e corre-me a mim no peito
em copiosos caudais.

Na hemorragia do mar
o rio entrega-se, abraça,
derrama na preia-mar
todo o ímpeto, toda a graça.

O sangue, esse é diferente,
não me faz tamanha afronta,
corre permanentemente
nas veias, só aí conta.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

DIVINDADES


Quando eu era menino a tempo inteiro,
Deus passava de mão em mão, fechado
numa caixa de madeira, com mealheiro
para a esmola e me benzer ajoelhado.

A Sagrada Família era aqueles três,
em pose de sorriso mudo e contrafeito,
a quem rezava cinco ave-marias duma vez
e me deixava, como um anjo, satisfeito.

Perdeu-se o hábito, agora já assim não é: 
há deuses para todos os rendimentos,
anunciam-se em flyers, em papel couché,
que prometem aliviar-nos dos sofrimentos.

Com os novos deuses não me entendo,
certificados, assépticos, com alvará
dão-me calafrios e sono, que só vendo…
Não fazem o meu género ao deus dará.

Fui crescendo e descrendo em sermões
e a esperança de ter um deus só meu,
que pela ladainha breve e dez tostões
podia até ter fé e um bom lugar no céu.

Para quem tiver dúvidas a meu respeito
e disso faça uma questão de consciência,
saiba que fui concebido sem defeito
e Deus é uma prova da minha existência.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

ESTILÍSTICA


Avisam alguns tenentes da literatura
sobre o uso de ‘ques’ e ‘comos’. O estilo
esmorece – dizem a quem os atura –
o texto e não tardam em substituí-lo.

Ah, a estilística, madrasta dos banidos,
fiquei sem advérbios, sem adjectivos…
A partir de agora, nos meus livros,
vou usar apenas verbos e substantivos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

APONTAMENTOS SOBRE AS CASAS


Queremos às casas o mesmo que aos cachecóis,
aos casacos que nos agasalham ou refrescam, mais nada.
Não é amor o que sentimos pelas casas.
Usamo-las, sentimo-nos únicos dentro delas e é tudo.

Dentro de casa somos o que não formos capazes
de ser fora dela. Lá nos refugiamos e lá guardamos tudo:
razões de sobra, memórias avulsas e ninharias
às quais só mesmo nós lhes encontramos algum valor.

É impossível não pensar que há gente sem uma casa,
que vive na rua e não tem segredos para guardar,
aconchego para cobrir a miséria dentro de portas
e chama casa ao lugar onde acontece estar vivo.

As casas são eternas entre si, não para nós,
que as deixamos, as desprezamos sempre com amor,
porque as vestimos e despimos, porque são a pele
do nosso corpo respirando em carne viva.