terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

PRAÇA DAS PALAVRAS




Uma procissão de palavras com maior
ou menor sentido, encharcadas de fé ou fértil imaginação,
caminha com devoção à frente do poema.
Alguma serventia terão. Mas não será por isso
que o céu a todas abrirá os portões de ouro e mogno
- que, sendo o céu o que é, assim deverá ser –
porque agora é tarde e faz tempo que o poema deixou a praça.
Ide, digo-lhes, por hoje é tudo,
amanhã  haverá nova safra e tudo começará de novo.
Cabisbaixas, regressam aos subúrbios da memória.
Oiço-as grazinar à medida que se afastam
porque é com elas que eu também regresso
e ao poema não importa a minha ausência.





domingo, 26 de fevereiro de 2012

POESIA DE LEI


Passo a vida a cumprir leis, estas e não aquelas,
por isso também infrinjo normas e decretos
e regulamentos e mandamentos avulsos,
que terei sempre de observar,
mesmo que nunca os tenha visto mais gordos.
O legislador é como um alfaiate,
que talha e corta o pano conforme o cliente
e põe em prova com a habilidade e a arte dos alfinetes;
como um camponês, que enterra o arado
e rasga a eito a terra a semear o que o tempo lhe permitir,
o que for subsidiado, o que for abençoado.
É o que me dizem. Só não compreendo por que tem de ser
um funcionário com cara de poucos amigos ou
um polícia com mau hálito
a explicarem-me os imbróglios em que me meto, segundo a lei.
Estarei atento ao relatório da medicina legal,
curioso por saber a morte que de direito me cabe,
coisa que ninguém terá obrigação de me explicar,
para não dizer que é inútil insistirem.
Ninguém é obrigado a fazer o impossível.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

GLOBALIZAÇÃO


Alguém inventou que tudo seria global
mesmo que não fosse
para que uns pudessem estar perto e outros longe
sem o saberem. Afinal estamos longe, o que é uma pena.
Perto está quem pode comprar a distância.
Ainda não é desta que a luta de classes acaba…
Por global entende-se uma esfera, mas não é isso,
nem o é por a terra ser redonda.
A globalização significa que a totalidade dos meios e dos recursos
está ao alcance de todos e é essa a embófia que nos vendem.
Não sei por que razão a miséria e as mortes
são sempre do mesmo lado. Talvez porque a Terra
é achatada nos polos, o que deve dificultar a manobra.
Um dia destes, quando esta informação chegar
às aldeias do ocidente e às outras por acidente,
poderemos finalmente – ao contrário dos deuses que,
como bem sabemos, não adormecem nunca - dormir tranquilos,
mortos de cansaço.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

VERDADEIRA MENTIRA


O que vale uma bela verdade
sobeja de uma mentira bem urdida, repetida.
Andam por aí como andorinhas perturbadas, as verdades
e como arneiros espaventosos, as mentiras.
São ambas de livre acesso:
na política de cá e na que se faz lá fora,
nas grandes superfícies comerciais e no guiché
das urgências, enquanto ainda nos comprazem os sentimentos cristãos,
nas paragens e no interior dos transportes públicos,
na escola, incluindo os períodos de recreio,
nos andares acima e abaixo do prédio em que habitamos,
(é bom não começar já a duvidar de nós mesmos)
naquele terço de dia em sublimamos os instintos predatórios,
em todas as repartições públicas e é provável
que também nos códigos de barras, mas não posso garanti-lo.
Ao contrário da verdade,
dizem-me que a mentira é perfumada.
Talvez por isso não direi o que me tinha proposto:
cheira mal.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O LIMITE DA PACIÊNCIA

Há muitos anos que trago entre o peito e o estômago um escriba inconformado de seu nome João Corvo. No dia 11 de Fevereiro, na manifestação em Lisboa, foi dos últimos a arredar pé. Escreveu depois o texto que se segue. O Mário Quintas registou a impaciência do sol.
Há com certeza um limite para a paciência
que eu não conheço, caso contrário, o elástico
invisível da tolerância pode abrir fendas
e estalar-nos nas mãos ou, pior ainda, na cara.
Ninguém é suficientemente louco para
suster dessa forma a respiração.
Dito de outra forma, ninguém, por muito parvo que seja,
deixa que o elástico estique, estique, estique,
ao ponto de não se poder falar já de tolerância
mas de uma qualquer algolagnia mal curada…
Deuses e construtores de automóveis
compreenderam desde o início
a necessidade de um limite para a paciência:
os mandamentos e as buzinas, se não resolvem completamente,
vão dando para as encomendas.


Os asininos de fala fácil e fato assertoado
- albarda-se o dito à vontade do dono –
cumprem um papel relevante:
obrigam os restantes a testarem os limites
(se os mandamentos estão bem encrustados nos sentidos;
se as buzinas são suficientemente timbradas).
O problema é que se multiplicam com maior frequência
e a sua proliferação pode tornar-se intolerável.
Apesar das galinhas serem como são
e bem poderem ser suas excelentíssimas mães,
aqueles não são ovíparos, não se podem matar no ovo
e comer mexidos ou estrelados, conforme a vontade
ou a gana que provocam.
Estou a perder a paciência. Repito: não conheço o limite,
mas garanto que não vai sobrar elástico.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

PORTUGAL

Ainda outra foto do Mário Quintas

O mastro que vejo além é Portugal
posto em pé ou, melhor digo, insepulto?
O mesmo que depois das lágrimas e do sal
é exposto ao ridículo e ao insulto.

Se é da lusíada gesta o sonho
da descoberta, é deste o pesadelo:
tanto de burlesco como de medonho,
que dá pena assim voltar a vê-lo.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

FAZER CAMINHO

Esta impressionante foto a que o Mário Quintas chamou “Vida Dura” sugeriu-me o poema.

Penoso é o caminho até que os braços
se ergam como asas, como espadas.
Quanto falta andar, quantos passos,
quantos trilhos por rochas escarpadas?


A razão diz: “vamos lá, vamos andando”.
Um passo pode bastar para o salto
porém, correndo, nunca fiando…
uma coisa sei: havemos de chegar ao alto.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

INSOLAÇÃO

Fotografia do Francisco Costa. Pormenor da manifestação de dia 11 em Lisboa, em que ambos estivemos, acompanhados de 300 000 outros manifestantes.

Persiste o céu nublado, ameaçando chuva
dentro de nós, prenúncio de tormenta.
O Sol (permito à minha assumida ingenuidade perguntar
por que razão ambos nos consolamos nos seus braços)
aliou-se ao inimigo: mente;
não é o seu tempo mas o tempo dos que o exibem
como troféu e iludem como benfazejos.
Mentem, já o disse.
Mentirão enquanto as águas deste inverno,
e de outros que hão-de vir,
não forem a enxurrada que leve adiante
a mentira que há em todo este Sol de sombras feito,
que a alma gela, vá lá saber-se porquê, em pleno inferno.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

CAMINHOS

Não há dúvida que se trata de nova fotografia do Mário Quintas. Desta vez para ilustrar o penoso caminho dos quilowatts. Em boa verdade, a foto nasceu primeiro… Quanto à última rima, já vi pior...

Cada um segue o seu caminho
e ter o seu é já de ficar grato:
por estrada ou como passarinho,
a pé é que já vou ficando farto.


Viajo assim, deus o saberá…
solto os olhos por aí a meditar,
poisam aqui, depois acolá
e vou onde quiser só de olhar.


Melhor é que ao andar se faça,
como aqui procede o quilowatt,
que por nós corre e desembaraça,
galgando o espaço a corta mato…

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

ÁRVORES

Inexcedível, o meu amigo Mário Quintas. Não só no seu envio de fotografias como na excelência da sua qualidade, como é o caso desta árvore formidável.

No que às árvores diz respeito,
há dois sujeitos em mim:
um que as honra e, com efeito,
outro que as tem por outro fim…


Em qual dos dois que proclamo
sou mais sensato ou mais bruto:
quando as admiro ramo a ramo
ou quando lhes saboreio o fruto?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

QUE RAIO DE ENGENHO


Objecto decorativo à entrada do restaurante “A Nave” em Salgueiro do Campo

Que raio de engenho!
Rodar, não roda
e, olhando ao desempenho,
é coisa fora de moda.

A quem terá lembrado
um aparato assim,
que de andar parado
me dá voltas a mim…

Mó? Lagar? Torniquete?
Coisa para inglês ver?
Por certo algum joguete
apenas para entreter.

Lembra-me o governo d’agora:
com a pompa e o penacho,
ares de interesse por fora
e calca na mó de baixo!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

CRISE A MEIAS


Meias, metades são,
peúgas de algodão,
malha (demasiado) fina,
um tanto frias:
calcanhares em pele genuína,
digo, já tiveram melhores dias…


Nas pontas, pequenas janelas
que fazem andar de monge:
os dedos respiram por elas;
por este andar vamos longe