segunda-feira, 31 de maio de 2021

SONETO QUASE PARNASIANO


Tremiam com pétalas de rosa as tuas mãos

de um branco tão casto e imaculado,

que mesmo entrelaçadas, como bons irmãos

nada mais nos comprazia; nada era errado.

 

Caminhávamos pelo bosque enfeitiçado

como pombas alvas, de interesses vãos,

e afinal tão juntos, inocentes e de braço dado,

dos ramos mais sadios, frutos sãos.

 

Comedidos, como deus manda, sorridentes,

medindo frases, deixando outras entre dentes,

deambulantes fomos ao sabor da vida airada.

 

Findo o passeio, o casto passeio de inocentes,

éramos ainda simples enleio de parentes,

trementes pétalas de rosa… e mais nada.


 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

UM DIA DESTES



O fogo já não arde como ardia; tornou-se meigo,

um enternecedor afago ou quase.

Queima por queimar, sem ímpeto, sem chama.

 

A água deixou de saciar as sedes mais antigas,

aquelas que não foram satisfeitas em devido tempo

e corre agora, salobra, entre musgos e juncos.

 

São irmãos que o tempo transformou em brandura,

que as viagens do Sol tornaram rotina.

Um dia acordarão com estrondo. A ver vamos.

 

quarta-feira, 26 de maio de 2021

EQUAÇÃO


Em prudente equilíbrio, que vai-não-vai,

vai indo, vai indo…

Em permanente equilíbrio

entre todas as coisas e coisa alguma;

entre o que nunca chega e o que já basta.

Em periclitante equilíbrio:

morto pelo início, vivendo para chegar ao fim.

E no fim são as contas, as contas à vida

em vésperas de concluir a equação.


 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

PRAÇA DAS PALAVRAS


Uma procissão de palavras com maior

ou menor sentido, encharcadas de fé ou fértil imaginação,

caminha com devoção à frente do poema.

Alguma serventia terão. Mas não será por isso

que o céu a todas abrirá os portões de ouro e mogno

- que, sendo o céu o que é, assim deverá ser –

porque agora é tarde e faz tempo que o poema deixou a praça.

Ide, digo-lhes, por hoje é tudo,

amanhã  haverá nova safra e tudo começará de novo.

Cabisbaixas, regressam aos subúrbios da memória.

Oiço-as grazinar à medida que se afastam

porque é com elas que eu também regresso

e ao poema não importa a minha ausência.


 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

RECADOS AO OUVIDO



Deuses e demónios zumbiam-me ao ouvido

julgando-me permeável, surdo ou distraído;

terão achado que o assunto me deixava comovido

e cuidavam fazer-me bem, o que eu duvido. 

 

Quiseram ter-me sem nunca me terem tido,

por engano ou porque lhes fosse desconhecido

e por fim, tudo apurado, mas não compreendido

concluíram que não fazia qualquer sentido.

 

Deste incidente não resultou qualquer morto ou ferido.

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

A LIVRE GIESTA


Quis saber o que pensa a Liberdade.

- E o que disse ela?

Maravilhas. Disse-me até, valha a verdade,

que a flor da livre giesta é amarela.

 

Amarela? – Perguntei-lhe eu,

não podia, por natureza, ser encarnada?

E foi simples a resposta que me deu:

é da cor que mais gostares, ela é giesta e mais nada.


 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

LÁGRIMAS


Chorar de alegria

são lágrimas de poesia;

uma metáfora urdida

em tecido de cambraia,

onda que se desfaz na praia

sem conta, peso ou medida.

 

Já o choro e a tristeza

são da mesma natureza;

águas da mesma levada:

uma só lágrima vertida

tem conta e tem medida

e pesa uma tonelada.

 


 

segunda-feira, 10 de maio de 2021

POEMA DO NADA


Ontem, já noite de pijama,

deu-me para escrever um poema a partir do nada.

Meio acordado, deitado na cama,

confesso que não lhe achei grande piada.

 

Levantei-me, que a poesia assim obriga

e adora ser apaparicada,

meti qualquer coisa na barriga,

voltando depois à empreitada.

 

O qualquer coisa que é nada

(como bem sabeis) deu-lhe para tomar jeito

e já rompia a madrugada

quando concluí: nada feito!

 

Perguntam-me: se nada fiz, porque partilho,

mas tudo tem a sua razão de ser:

livro-me deste peculiar espartilho,

e de vós terei um deixa lá, vamos lá ver.


 

sábado, 8 de maio de 2021

CASTELOS NO AR


No tempo em que a neve e as nuvens eram de algodão,

assim nos parecia bem disfarçar a cândida natureza,

salpicando as árvores, os rústicos telhados e a ilusão

de alegres e pueris alvuras e tudo era elementar beleza.

 

Nesse tempo, se existiu esse tempo e nos foi comum,

havia príncipes e princesas a imitar os sonhos e a felicidade…

Rasgões nos joelhos, lanhos na cabeça de cada um,

estes sim, trouxemo-los intactos a reboque da idade.


 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

O DOM DA PALAVRA


O som da palavra bom,

é a sua pele, o seu tom:

o bom da palavra é esse;

o dom não lhe pertence.

 

Meio-tom é quando abranda,

amolece e não desanda,

é som que não aquece,

dom que nem aquece nem arrefece.

 

Puxa palavra, palavra puxa

e não dá, não desembucha,

o dom não flui, não sai

nem com palavra d’honra lá vai.


 

sábado, 1 de maio de 2021

AQUI ONDE RESPIRO


Cheiro cada flor como quem beija

e todo o meu corpo sorri nesse instante.

Respiro e é tudo o que preciso.

Por aqui me socorro de jardins e de flores,

mas só por aqui. Em qualquer outro lugar

não me farão falta; não precisarei de respirar.

É provável até que nem memória de flores

possa haver noutro lugar diferente deste

onde cheiro cada flor como quem beija

e sorrio, e respiro, e vivo.