sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

CONTO DE NATAL *

* CRÓNICA IN POVO DA BEIRA 12/12/2018
No princípio era sábado, nunca me hei-de esquecer, levantei-me cedo para tratar do couval que tenho há algum tempo para me entreter nos fins-de-semana. Deus dormia num divã ao meu lado, ressonava. Tinha acabado de criar a sua obra-prima, o universo, embora de início tivesse querido fazer uma trotinete, por ser mais divertido. Acontece que antes se deu à invenção das asas, distribuiu-as pelos anjos e a trotinete pareceu-lhe uma obra menor e sem qualquer préstimo. Fez o universo, como disse, que lhe deu trabalhos dobrados, por não ser o que esperava e por ter de o encher de mundos e de perguntas que ele próprio não sabia responder.
Ia falar da minha intenção de tratar do couval. Fica ali numa encruzilhada onde Deus queria plantar umas macieiras do tipo red delicious, salvo erro para tramar um casal nudista que lá vivia e cujo despudor o incomodava. Ao que me apercebi, a tramoia passava por uma magia metafórica, muito a seu gosto, que acabou por levar a cabo noutro local, por insistência minha. Fiz-lhe ver que ele, como todo-poderoso, sempre podia arranjar um terreno bem melhor, paradisíaco até e, se as coisas tinham chegado àquele ponto, a culpa era sua, que os criou e colocou ali nus e ignorantes em boa terra de cultivo. Além de tudo isto, não fazia sentido ser eu a plantar o couval longe dali pelo trabalhão que isso me iria dar. Por uma vez foi razoável e aceitou a minha ideia.
Naquela manhã de sábado, as couves estavam uma lástima. Muitas delas já comidas até ao caule e outras de folhas esburacadas por centenas de horríveis lagartas listadas e peludas, que enchiam as respectivas panças até rebentar. Fiquei desolado.
Voltei para casa de mãos a abanar e capaz das maiores blasfémias. Chegado ao quarto onde Deus dormia ainda a sono solto, abri as janelas, como quem diz já são horas de endireitar o esqueleto e gritei:
- Que bichos são aqueles que puseste nas minhas couves?!
Deus virou-se, esfregou os olhos, alisou a farta barba grisalha e, fixando-me como um míope à procura de alguma coisa, resmungou:
- Que horas são?
- São horas de te levantares e de me explicares porque encheste o meu couval com aquelas miseráveis lagartas, que outro entretenimento não têm senão comerem as minhas couves.
- Não fiz por mal, são minhas filhas, filhas de Deus… Não queres que vá agora cometer infanticídio…
- Tu nunca fazes nada por mal, és um santinho, respondi-lhe irritado, ironizando com a sua proclamada santidade.
- Não blasfemes, tens de te habituar às adversidades, resmungou ao mesmo tempo que voltou a virar-se para a parede.
Fiquei furioso com aquela displicência divina perante o meu desespero e atirei-lhe:
- Ai é?! Então trata de arranjar onde passar a noite de Natal, que sem couves, aqui em casa, não há consoada para ninguém.