quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O CAMINHO DAS BÉTULAS DE JOÃO CORVO


No lançamento de O CAMINHO DAS BÉTULAS DE JOÃO CORVO, tive o privilégio que o Poeta, estimado amigo e meu antigo professor de literatura portuguesa, Dr. António Salvado fizesse as honras da apresentação deste primeiro livro heterónimo.

Aqui se dá conta do texto integral desta recensão crítica, com o meu agradecimento sincero.  



Livro surpreendente este, o último de João de Sousa Teixeira, e o curioso espanto saboreia-se no miolo do fruto de sucessivas atmosferas de ares multicores ou de focalizações modais e temporais (no que se refere à apresentação poética) e umas e outras – as atmosferas e as focalizações – interferindo positivamente na expressão formal ou no conteúdo inovador que singularizam O CAMINHO DAS BÉTULAS, palavras que dão título ao livro. E o quase assombro tem início no próprio título enunciado. Ora, ‘bétula’ é uma planta lenhosa, espontânea ou que pode ser também cultivada. E com esta espécie de pano de fundo ou de recurso metafórico teceu João de Sousa Teixeira uma rara rede de substância discursiva ramificada e vocacionada para conciliar as múltiplas sequenciações (e veremos quais) que vivificam os poemas do livro O CAMINHO DAS BÉTULAS.
E o presente arrazoado, porque estamos perante interessante simbiose entre a planta lenhosa de caule firme com a espontaneidade do seu nascimento ou do seu cultivo, simbiose na qual se avivam (numa análise de conotação, de aprofundamento da mensagem) os conceitos de imediatismo (versos surgidos em impulso súbito) e de vigilância (o verso a pouco e pouco construído e quantas vezes alterado). Resumindo: ‘bétula’ adquire a configuração de sinónimo de poema e o poema absorvendo a seiva da ‘planta’ – espontaneidade (inspiração, dádiva dos deuses) e cultivo (vigilância no arrumar das palavras).
O poeta, em livros anteriores, havia-nos habituado a uma dicção formal que tinha a sua exemplificação no verso que associava métrica a ritmo, evitando o chamado versilibrismo ou verso livre alheio a métricas e rimas. Neste aspecto, é justo dizer que, em tal perspectiva, (o da associação da rima à métrica), João de Sousa Teixeira se foi estruturando como genuíno criador de emissões verbais verdadeiramente fascinantes. E quanto aos conteúdos (e a nossa lembrança vai para muitos dos seus livros anteriores), os poemas de João de Sousa Teixeira primam por constituírem um testemunho de óptima capacidade para ‘fazer humor’, para ironizar com assuntos revestidos de… seriedade – atitude que, com insistência, conduziu o poeta até visível crítica de teor social. Em tal coordenada, será justo relevarmos a qualidade atractiva da ‘mensagem’ que peculiariza muitos dos seus poemas, assumidamente ‘engagés’. Mas voltemos a O CAMINHO DAS BÉTULAS. Eis uma outra parcela da surpresa. O verso agora escolhido para a materialização das ideias é o verso livre, espontâneo, sem o rigor de métricas ou a correspondência de rimas. E sabendo nós que esta atitude forma, hoje em dia, a articulação pela palavra escrita da enorme maioria dos poetas (o recurso ao verso livre), atrevo-me a confessar-vos que, ao ler este livro de João de Sousa Teixeira, somos atravessados por uma outra acutilante surpresa: estamos perante um bem dotado discípulo-leitor de Álvaro de Campos ou de Alberto Caeiro, heterónimos de Fernando Pessoa. E no âmbito dos quase assombros que o livro suscita, o nosso poeta ‘inventou’ também um… heterónimo: o de João Corvo. E porque não pardal, coruja, pombo, etc, etc?... Mais uma vez a carga metafórica a envolver a escolha dos ‘bichos’. Ora, o corvo é um pássaro carnívoro, de plumagem negra, tem um bico maior, mais comprido do que a cabeça, possui grande envergadura e parece que até destrói roedores prejudiciais. E este João Corvo traça, sem qualquer dúvida, o acentuado perfil do poeta – boa envergadura linguística, palavra afiada para denunciar injustiças, óptima ‘alimentação’ vocabular e técnica quanto ao discurso poético, ‘plumagem negra’ e … a tendência para o humor. E, em breve nota, João Corvo afirma ter ligação à terra, à natureza, à infância, aos amigos, e sentir o apego ao campo e à simplicidade da vida sem ambições. Contudo, esta afirmação resume a ‘explicação’ que o próprio João Corvo nos dá das suas ressonâncias poéticas. O resto (ele o escreve) terá de ser feito por nós, leitores. Porque, ao fim e ao cabo, este João Corvo irá avolumar com hábil destreza, com repercutidos timbres, com emotiva vivacidade, o veio satírico e subtil de indiscutível e vasta dimensão no poeta João de Sousa Teixeira. E avanço com outra pertinente curiosidade e esta dizendo respeito à própria arquitectura do livro. Se olharmos o índice, verificamos que a ordenação dos poemas segue um esquema alfabético dado pela primeira letra do título do poema. Eis o rigor do itinerário poético seguido ou a seguir, já que ‘tudo’ se percorre entre alfa e ómega, entre um A e um Z – e assim decorre/corre a vida, as circunstâncias que enformam esta. E antes de esmiuçarmos a tal ligação à terra, à natureza, aos lugares, aos tempos, de que nos falou o João Corvo, ouçamos (e atentemos) no interessante poema TANTOS VERSOS, QUANTA POESIA?, que ergue uma autêntica arte poética trespassada de assinalável sinceridade:

Há quem diga que poeta é o que faz versos.
Eu não concordo: uma coisa é o poema
e outra, bem diferente, é a poesia.

Apanhar em voo o beijo de um pássaro,
por exemplo, é poesia, mas não é poema;
que não há versos para tal proeza.

Dizer que é um baile alado pode ser poema
mas quem no par descuida o olhar, dançando,
faz versos sem legenda e tem poesia. 

Em poema de título AS LETRAS elabora o poeta um outro cenário bem vigoroso. Claro que as letras não passam de simples sinais e por si só(s) pouco valem… Associadas, porém, a significados e a sua recôndita potencialidade ‘emergirá em plenitude. Servem, então, para dar origem a ‘palavras’ e estas, claro, sem as letras… não existiriam. “As letras, ai as letras, se pudesse lavrá-las, podá-las, como seriam as palavras?”, Interroga-se o poeta num misto de (in)certeza e de perplexidade. E, uma vez no corpo das palavras, as letras adquirem contornos, abarcamentos, agudezas, fecundidades, fisionomias – enfim: alcançam um universo fulgurante de modulações… Esclareçamos: todos estes fios do tear enfatizam os poemas de João de Sousa Teixeira/João Corvo: E, parafraseando, “a tristeza das palavras contagiadas de letras vadias e que sofrem de epidemias gravas e o texto não são versos, são frases apalavradas?”.
E, no seu percurso de criador, o poeta desvenda, pelo caminho, as bétulas, a flor das bétulas (sempre a metáfora) que é a esperança em cada atalho ou em cada vereda da floração percorridos. E da sua janela, o poeta avista a charca luminosa do tempo longínquo a testemunhar a fonte da vida de um lugar. E a chuva, ah, a chuva, como ela figura ou desfigura as coisas e como ajuda a frutificar os veios da memória. E, depois, a aldeia e a quase sacralidade do lugar, um pequeno cosmos em espaço e ilimitado em tempo, pleno de sortilégio, de segredos, que, na realidade da sua humildade, vence a cidade grande, vívida em mentiras, atribulações, ignorância. E as velhas árvores que, animizadas e perante a efemeridade de tudo, não hesitam, no seu mutismo, em ‘afirmar’ a perenidade da vida. E que beleza, a espraiada pelas buganvílias – “ a causa, diz o poeta, a causa essencial do meu sorriso.” E quantas tristezas durante o ‘passar’ do quotidiano – fomes, mortes…
E os ‘pássaros enjaulados’ – evidente paradigma do ser humano quantas vezes na mesma situação de enclausurado, de atraiçoado na sua dignidade. O poeta, no entanto, chama à sua atenção de perscrutador essa ‘coisa’ que apelidamos de ‘globalização’. E porquê? Para quê? Para nos afirmar: “Não sei por que razão a miséria e as mortes são sempre do mesmo lado.” E, de quando em quando, mas com alguma insistência, a sua ligação à terra e à sua… ‘evaporação’ – e eis a lagarta das couves, o madeiro, o coração das árvores. E o sonho ou o atropelado sonho do poeta. Ouçamos o poema ONDE A TERRA:

Onde nos leva o mar, onde nos deixa?
Eu quero o mar com pássaros, com árvores
e com cheiro a maresia sobre as pétalas.

Quero um mar de flores, barcos de árvores;
ilhas  de sossego e sem cidades;
quero as coisas livres, inacabadas, naturais.

E, se assim não for, se o não quiser,
que seja terra, água da ribeira, musgo ou beijos
de sol na eira debutando em cada safra.

Por fim, se mais não sobrar, não sobreviver,
quero vestir-me de nuvens e de água, porque quero ir
bem vestido quando já não fizer qualquer sentido.

E o prosseguir, o continuar, o permanente desvendar e, pelo caminho das bétulas, - “as certezas, diz o poeta, são as minhas maiores dúvidas”. Evidentemente que de paradoxos se constrói também a vida, o percurso. E a necessidade premente de partir – “ Seja lá para onde for a liberdade”, escreve. O sonho permanece, então. E como as palavras, assim são… as pedras, porque, reconhece o poeta, também elas possuem vida própria e, diz, “permito-lhes uma existência natural, /a mesma que me é dada a mim,/enquanto não precisar de arremessa-las/contra os muros levantados pela indiferença.” E eis a função das pedras: serem arremessadas contra os muros. Que fina e consciente ironia se derrama por estes quatro versos…
E mais apelos, e mais lembranças avivadas pela memória: a primavera ou o cruel inverno e as sementes (fonte de toda a criação) – enfim, na natureza tudo é “âncora dos nossos desvarios” – uma âncora que nos prenderá a quantas e diversas realidades e que abre a via que permita ao poeta exclamar: “Onde estão os frutos sãos, que tenho fome de os ver?” Onde, poeta? Ou, subitamente, a ‘teorização’ para e de aquilo que superlativa o interior de profunda e real vivência chamada solidão. Valerá a pena ouvirem o poema com este nome, tão rico em seus pormenores de expressividade emotiva:

Procurei durante algum tempo uma imagem para a solidão.
Reli cartas de amores não correspondidos,
meninos pedindo esmola, trilhos antigos nunca mais pisados,
frutos apodrecidos e por colher, folhas amarelecidas
e, de repente, dei comigo numa rua miserável,
provavelmente consumida por uma guerra recente,
onde caminhava , de olhar vago,
em busca de um nada que pudesse ser alguma coisa,
um homem, e aos seus ombros um cão, de olhar igual
e de demanda afim. Pensei: esta é a imagem que procuro!
Errei em toda a linha. A solidão existia apenas em mim…
Eles estavam ambos em boa companhia.

E os sons da floresta, repletos de vida no seu esplendor. Mas, e também (e porque não?) o aceno da morte – porém, acerca desta realidade, escreve o poeta: “pensar na morte é só pensar na morte/e a própria morte é não pensar mais nela/porque tudo é tempo que passa sobre a vida.” Sim: o tempo no seu inexorável fluir, abeirando-se da tristeza, de tantas vicissitudes surgidas durante o itinerário, o caminho das bétulas.
Após o A, o alfa e em continuidade progressiva até se atingir o ómega, o Z, e eis-nos na derradeira paragem: um lapidar poema que recebe como ‘personagem’ central (outro assombro) a formiga. E o poema chama-se ZOOLOGIA:

A formiga é um insecto estranho:
para garantir a sua sobrevivência
suporta várias vezes o seu próprio peso
e corre a uma velocidade superior ao record humano
dos cem metros livres. Tudo isto é relativo.
Mas se o homem tivesse estas capacidades
creio que teria já acabado com as formigas,
com os buracos onde elas vivem
e  com a Terra, um número indeterminado de vezes.

Sentidamente “sério” o conteúdo deste pequeno poema a prestar-se a profunda interpretação.

E terminemos. Confluência de discurso poético liricamente atraente e de excurso algo esvaído mas satiricamente contundente, poemário definido por afloramentos diversificados na sua consistência intrínseca e concretizado, de conjunto para conjunto, por originais atributos de indiscutível expressividade – O CAMINHO DAS BÉTULAS merece, sem dúvida, ser lido.


                                                                  António Salvado