terça-feira, 29 de maio de 2012

LEMBRETE


Não me faço de credos, súplicas ou preces,
de penas, plumas, sombras, atalhos, escoras;
faço-me de tijolo como a casa onde moras,
e as demais coisas simples que conheces.
Ou talvez não! Se a vida te acontece felizarda,
com elmos, filtros, senhas de desembaraço.
Como te digo, não é disso que me fiz ou faço:
faço caminho e caminhando me protejo:
não peço nem quero um beijo por um beijo,
não dou nem aceito um abraço por abraço.


Já neguei o que depois me fez chorar!
Enganos todos temos, incertezas quanto baste,
às vezes sombras, nuvens e medos, por arrasto,
mas jamais cruzar os braços e esperar.
Das cores distingo as que quero, excepto pardas,
fluorescentes e néones de delicado traço…
tampouco confundo um aeroporto com um terraço.
Se o tempo urge corro, dou aos braços e adejo,
mas não peço nem quero um beijo por um beijo,
não dou nem aceito um abraço por abraço.

domingo, 27 de maio de 2012

CORAÇÃO


Transporto dentro do peito
um relógio feito de bronze,
oxalá não ganhe defeito
e dê o meio-dia às onze.


Não de bronze, mas lata
que, dê as horas que der,
já não ata nem desata;
não corre nem deixa correr.


Ou então feito de arame
com volteios e cadeado,
capaz de matar quem ame,
tornando-se arame farpado.


Fosse de oiro, isso sim
quanto valeria em aforas!
Mas com um relógio assim
para que queria eu as horas?


Possivelmente é de mistura
para que o mal não ataque,
e enquanto a vida dura
faça: tiquetaque, tiquetaque.



quinta-feira, 24 de maio de 2012

INGREDIENTES PARA UM POEMA DE AMOR


Para não torrar, deve cobrir-se a forma
de pétalas de rosa. Pode ser um ramo…
A massa é doce, mas sem fazer dano.
Leva-se a lume intenso, em chama, por norma,
trinta e sete graus são bastantes para não queimar.
O tempo é a gosto, depois se vê.
Afectos, crenças, juras e promessas, q.b.
E fica pronto. Nota: convém amar.

terça-feira, 22 de maio de 2012

MÚSICA DITA


Não te vou mentir:
o que não tem música
ainda não sabe que está morto.


O melro trajou de gala
para o último concerto
e a recente primavera vestiu-se de luto.


Não te vou mentir:
pode escutar-se a melodia
durante o silêncio da orquestra.


Bastam os címbalos
(oh, scherzo de brisa e espuma!)
Basta a nudez das notas.

Não te vou mentir.
Consegues ouvir-me?
- É o solfejo do teu corpo.

domingo, 20 de maio de 2012

O CÉU DOS PARDAIS

Por natureza sou aquilo a costuma chamar-se assustadiço. Não o serei por debilidade física e muito menos por fraqueza de cérebro, se me é permitida a autoavaliação, que não me tem dado grandes trabalhos ao longo da vida. Em meu abono, julgo que a explicação reside no facto simples de raramente estar onde os demais me enxergam. É esta uma prorrogativa dada a poetas e outros filhos das estrelas. Eu mesmo me surpreendo quando dou por mim distante do lugar que afinal me ocupava todos os sentidos e me pergunto: “como vim eu aqui parar?” Esta é a explicação que me ocorre hoje, entre prédios de muitos andares, semelhantes a caixotes empilhados, e me ter sentido perdido, como se caminhasse num qualquer deserto feito de areia e sol; de chão e céu; de gatos e pardais por única companhia viva. A todo aquele amontoado de quadrículas coloridas agora vazias e vestígios de árvores, quase como náufragos, houvesse aqui um mar, despenteados e atónitos, socorrendo-se da grossa estaca para a sobrevivência possível, resta-me um velho conhecido, azul, como uma estrada por cima da minha cabeça e, como disse já, os gatos e os pardais, aqueles no paraíso e estes, por enquanto, no purgatório. Estremeci. Em cada um daqueles favos, chamemos-lhes assim, vivem pessoas que, não podendo eu vê-las ou sequer ouvi-las a esta hora do meio-dia, por certo ali se acolhem, comem, dormem e também discutem, deitam contas à vida, amam e odeiam e fazem planos para futuros que ambicionam. Por experiência sei que raramente se conhecem uns aos outros e, salvo uma ou outra excepção, não se cumprimentam quando se cruzam na rua. Quanto a nomes, se decoradas algumas fisionomias, como se de uma só família se tratasse, chamam-se “vizinhos” ao que por vezes acrescentam o número da porta e o andar onde residem. A isto se chama um bairro, ainda há pouco tempo não mais que um matagal nos arredores da cidade, agora de gente cheio como um ovo. Este é o modo de vida ideal para alimentar a curiosidade mórbida de bastantes moradores. Alguns se entretêm a contar entradas e saídas deste ou daquela como se fossem encarregados de qualquer entidade estatística de bons comportamentos cívicos e morais. Outros trazem-se em cuidados quase verdadeiros por aquele vizinho da frente que tem deficiência motora ou, por quem será a ambulância do 112, que nos últimos 15 dias já parou três vezes dois quarteirões abaixo, com aquela sirene irritante e os pirilampos azuis que, reflectidos pelas janelas dos prédios parecem de mil carros e de mil pedidos de socorro, mitigando fomes que para aqui não são chamadas. Arriscam estes vizinhos, deambulando com o olhar de recanto em recanto, de varanda em varanda, de janela em janela – como os franzinos pássaros saltitantes – comer ou ser comidos… A tudo o que assisto ou pressinto e aqui dou notícia, devo esclarecer que hoje não vi, com estes, sim, que a terra há-de comer, qualquer assalto felino com êxito, pelo que a pardalagem pode dar-se por feliz por não ter “subido” ao céu. Já no meu bairro, na minha casa, logo a seguir a este de que vos falo, componho as notas há pouco rabiscadas para que façam sentido e conto-vos esta história que, afinal, não fosse o caso de ser assustadiço, como já contei, podia ser igual à deste bairro onde moro e tudo me parece normal como se estivesse no céu, na companhia dos meus gatos e dos meus pardais.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

TORRE DO RELÓGIO


Sineiro sou, de sinos, pois,
que outros há que a rebate
ou mudos, de enfeite, a dois,
não sirvam a quem os trate?


Dou momentos , ave-marias,
horas mortas, desatino;
passo assim noites e dias,
ganhando p’ra corda do sino.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O CÉU A SEU DONO


No céu que vejo eu de novidade,
senão este ou o mesmo sol de antes,
nuvens estas ou apenas claridade,
erráticos pássaros em voos constantes?


Beirais, abaixo, rendilhando a lua,
prazenteira em seu jeito de engodo,
enchendo-me de luz a casa e a rua
de ilusões e céus de outro modo?


Deuses não vejo, sequer a sombra;
um turbante flutuando ou rasto,
e é este que não vejo que me cobra
o céu que não uso, de que não gasto?


Não há céu que assente como luva
mas que posso contra, outro há?
Se não me livra de calor ou chuva,
em cima também não me cairá.

domingo, 13 de maio de 2012

ANIMAIS (versão de João Corvo)



Não sou de recreações
com os pobres dos animais domesticados.
Contento-me em brincar e fazer festas
àqueles que a sorte trouxe ao pé de mim
e receber deles carinho
se para tal me acharem merecimento.
Talvez por isso, do circo que é o mundo,
em espectáculo permanente,
quando me caem no colo, com pedigree,
recomendados, animais de estimação,
demasiados para o meu gosto,
tiro bilhete e volto mais tarde.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

(A) NEM MAIS



O rato no queijo
a mosca no prato
e um percevejo
algures no quarto


o cavalo errado
com pulga n’orelha
é bicho danado
do arco da velha


o que põe gravata
é d’ outra seita
social democrata
da ala direita:


a filho d’ égua
(animal ruim)
não se dá trégua
do princípio ao fim

terça-feira, 8 de maio de 2012

A OBRA

O autarca sonha as obras que imporá à comunidade governada. Esta frase soa bem. Não pelo sentido solidário do sonho que àquele sobrevém e muito menos por ser sonho, que apenas burila o que na realidade não passa duma astúcia, digamos, eleitoralista. Soa bem a frase, dizia, talvez porque, não tendo ainda nascido a obra, já a comunidade a tem por garantida no sonho do autarca e assim salvaguardada ao mais alto nível, venha o tempo em que todos os olhos a possam contemplar e os restantes sentidos dela desfrutarem. A verdade, porém, é que a obra (que, por enquanto ainda dorme no sonho do autarca) não será obra da comunidade; ela será, a avaliar pela inscrição gravada na pedra ou no bronze, no seu limiar ou peanha, a obra do autarca que a sonhou. Aí se dirá, não a nossa obra, mas a obra de. Assim como se for vantajosa todos exclamarão bendito seja quem a concebeu, como se for estorvo e de préstimo duvidoso facilmente será apelidada como obra do diabo, denunciando desta forma a falta de visão ou aselhice do autarca. Pelo que atrás fica dito, e lá não voltaremos para emendar seja o que for, já se suspeita que, quando a obra surgir haveremos de olhar para ela, louvando a oportunidade do autarca ou desdenhando da sua utilidade, assim o autarca nos tenha caído em graça ou não passe dum pedante figurão que mais não faz que um simples gato ao marcar o território que lhe garanta a preservação da estirpe. Além do mais, são as obras o que são: umas capazes de persistir porque o cimento e as vigas conseguem resistir à erosão por mais tempo e outras que, não existindo já fisicamente, continuam na memória de quem as comtemplou ou delas tomou conhecimento de fonte segura. Nunca saberemos nós o que vai na cabeça de outros ao observar uma obra, se o que lhes interessa é o proveito que da obra podem ter ou se, pelo contrário, sentir que os demais vêem o que se lhes mostra ao olhar, sendo eles a verdadeira obra. Restam uma placa, uma inscrição com o nome, as atribuições e as mordomias de um fulano de tal cujo sonho deixou inscrito em coisa qualquer para ser revisto. Abençoado seja o saber alentejano que, no melhor das suas singularíssimas interjeições, transforma esta que nasceu nome em irónica locução adverbial para enfatizar o que está sendo dito com vaidade e não menor alarde: É obra!

domingo, 6 de maio de 2012

GUARDANAPO

O guardanapo é um objecto que, tendo à mesa a função de guardar a toalha respectiva do unto alimentar, se apresenta tantas vezes exposto de forma e feitio sofisticados, que outro objectivo parece ter e não o tem, de facto. É também o que diz o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, Livros Horizonte, terceira edição, 1977 e mais esta preciosidade do Auto das Fadas de Gil Vicente: Isto he fersura de sapo/que estaa neste guardanapo. Os mais comuns, os que pomos nas nossas mesas com a pressa que valores mais altos nos impõem, têm habitualmente a forma de um quadrado ou dum rectângulo. Mas se o local do repasto não é este doméstico local, logo nos deparamos com uma variedade imensa de feitios, para não dizer cores, de requintado gosto ou risível falta dele. E assim os temos em forma de triângulo, o mais clássico, pois desta forma se dá nome aos bolos que os imitam; enrolados, com e sem argola, como se de um conspirativo papiro se tratasse; em cone como pirâmides (papiro, pirâmides, queres ver que anda aqui mãozinha dos egípcios ancestrais?!) mas não nos levantemos da mesa, ainda. Claro que há aqueles que simulam flores e aves e que nos fazem hesitar entre o desdobro e não desdobro e obrigam, em limite, à primeira, para óbvio asseio e ocultação de gulas. Os que mais me espantam, porém, e sempre me deixam um sorriso cujo sentido profundo nunca identifico, são aqueles espampanantes leques, quais caudas de pavão ou entranhas de acordeão, postos ali em frente do prato, necessitando para isso quase sempre o apoio de um copo que os sustente. Diria com certeza muitos mais se a circunstância mo exigisse e a paciência de quem por estas linhas passa a vista não me merecesse todo o respeito. Ora, e tudo isto para quê? Para a higiene e os modos sociais, respondo eu, que nem sempre deram importância ao assunto. Mas, já agora, permitam-me estas bacoquices literárias, falta aludir à diversidade de alinhos a que este adereço obriga. Simples como é o asseio, neste caso se exprime de forma particular. O que para uns é sinónimo de retoque das comissuras, para outros obriga mesmo ao expurgo dos lábios, para não dizer beiços, que são de inferior conjuntura. Beiçola ou trombas são de muito baixa condição ou então o convívio já vai alto e a linguagem se vai descuidando, não tarda o insulto e a escaramuça. O mais comum, aquela designação que, não havendo na forja novo acordo ortográfico, não melindra ninguém, é o clássico limpar a boca. E está tudo dito. E agora perguntam-me vocês: “mas que diabo queres tu com essa conversa sem pés nem cabeça, de entretém para quem tem mais com que se preocupar?” E eu respondo: … Ora aqui chegados, com as boquinhas secas e capazes agora de vociferar até, vou eu terminar esta arenga com uma notícia que, não sendo nova, não deixará de o ser, porque notícia é o que se diz para que se saiba. Vem assim ao caso a investigação judicial àquele que foi ministro de um primeiro que, tal como o actual, tudo fez para dar cabo do país, e que ambas as mãos sujou, dizem por enquanto os jornais, em batotas ditas tráfico de influências. O ex-ministro de que falo, boca aberta durante todo o consulado, chamou camelos aos alentejanos a propósito da nova ponte sobre o Tejo, pelo que houveram de lha limpar, e nunca jamais encontrou sítio adequado para um novo aeroporto nem TGV que parasse na estação. A sua principal arma era por isso a boca. Suja, dizem as notícias. Agora terá de limpar-se ao guardanapo da justiça. Assim esperamos em abono do asseio que tanto necessitamos.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

VAMOS ANDANDO

Faz bem andar e eu gasto o tempo todo com o bem que me faz: subo calçadas, quase quebro o pescoço de olhar os prédios periféricos, choro as árvores que já lá não estão, alcanço a parte mais antiga da cidade e desço por escadas ou rampas até onde estranhos repuxões de água se soltam como serpentinas e molham o chão, molham o chão, não mais que isso. Consumo diariamente a cidade com a ansiedade de quere-la e crê-la sempre minha. O tempo em que dentro dela estive na clausura dos horários a cumprir e o tempo em que a ausência me fez o coração ter saudades, agravaram este sentimento pouco mais que patético, pouco mais que pueril. Há um bom par de anos viajei ao interior da Torre do Relógio, por curiosidade e amabilidade de quem tinha obrigação de alimentar o dito. Subi-lhe o bojo por escadas a pique, periclitantes (já não me lembro de que material eram ou ainda hoje são feitas) até à cúpula, com a admiração de quem toma finalmente intimidade com um familiar antigo e ilustre, como é o caso. Lá em cima tive a sensação de estar aquém do tempo. Esta ilusão era ditada pelo facto dos enormes mostradores do relógio estarem então virados para fora indicando a hora, enquanto eu os via do avesso, não fazendo, naquele instante, qualquer sentido a hora exacta. As entranhas são um estranho elevador de pesos que o meu amigo se esforça em trazer para cima, através duma roldana de ferro escura e viscosa do unto que lhe põem. O coração – a máquina que tiquetaqueteia o tempo – é, como seria de esperar, um conjunto de roldanas impulsionadas pelos pesos que fazem tender os cabos puxados a braçadas de genica pelo meu amigo e anfitrião. Além do mais, a sirene que, felizmente para nós, não precisou de avisar de qualquer incêndio enquanto ali estivemos, casos contrário teria sido insuportável para os tímpanos… Se à Torre do Relógio me refiro de forma algo minuciosa e extensa, entre muitas razões que me ocorrem, direi apenas que tal se deve ao facto de se tratar, para mim, o elemento urbano que mais e melhor identifica Castelo Branco. Não ficaria satisfeito se não vos contasse o que sei desta Torre, tantas vezes olhada com desdém, mas que nos faz sentir albicastrenses quando, da cidade arredados, nos vem poisar nos olhos. Longe, como quem mitiga memórias em forma de saudade, lá aparecia um amigo que, por algum motivo, o destino fizera passar pela Cidade Branca, me dava conta das novidades: “está enorme a tua terra” e, a modos para compor: “aquele jardim das estátuas…” Ou seja, um moderno e grande que não passa disso mesmo em versão de cor de burro quando foge e o sempiterno Jardim do Paço, pago para ser visto; visto para ser pago… E eis que chega o tempo das vaidades, dos que querem ter nome por baixo como as estátuas do Paço, e em toda a placa ou peanha deixam assinatura e alarde de risíveis galões. Este não é já o tempo da cidade se exibir e triunfar; mas o tempo de quem quer sobrepor-se e patentear aquilo que afinal menos interessa para a história: as suas excelentíssimas pessoas. Os tempos da modernidade – para os que a pensam a tijolo e cimento – foram os anos dos mercados e das capelinhas; das construções e das capelinhas; das actas emendadas e das capelinhas; das capelinhas, do compadrio à volta dos escrutinados interesses albicastrenses. Em toda a cidade se fez carnaval com arcos e balões, foguetes e espertalhões em correrias mal disfarçadas para acertar a venda de talhões: “quem dá mais, quem dá mais, a festa vai começar!” A estrema que já foi baliza é agora o princípio de tudo; a gula dos espertos, sempre de atalaia ao negócio chorudo; a única nata subterrânea conhecida, além dos combustíveis fósseis e de rendibilidade semelhante. Os anos, a ASAE, o POLIS e tantas outras coisas camufladas que vão dentro destas siglas, retiraram lugares, encantos, árvores (quantas árvores?!) e cheiros que tardo em reencontrar, se alguma vez for capaz de o conseguir… Meto as mãos nos bolsos e ninguém vê que as cerro de raiva e de inquietação. Uma pedra de calcário salta no passeio calcetado à moda portuguesa. Tento recolocá-la com a biqueira do sapato e depois, com o calcanhar, para que se enterre devidamente. Parece ficar segura. Sem que ela o venha a saber algum dia, agradeço-lhe por me suportar o peso e a irritação pelo que vejo e me sugere filigrana de latão, desenhos de um alienígena louco e vou andando. O que eu não sei é quanto do que toco e do chão que piso, que faz do meu itinerário leito de passagem - mal não me fará - excepto o remorso de caminhar em cima de tanta tratantada.

terça-feira, 1 de maio de 2012

METÁFORA DO TEMPO

O bom e o mau tempo não têm o mesmo significado para toda a gente. Talvez por isso haja quem diga que conversar sobre o tempo serve apenas para encher chouriços. Desenganem-se. Na verdade, este tempo seco e de sol insistente tem o significado de bom para uns quantos ociosos – chamemos-lhes menos avisados - mas não cura os males de (todos) quem pagará com língua de palmo a falta de chuva. Pode a ministra Cristas abrir uma fábrica de guarda-chuvas em cada Distrito e, depois, peregrinar a Fátima em demanda de água em versão celeste que, se é este o nosso calvário, outra coisa não se espera senão a seca severa da ministra e dos seus pares – todos eles, há muito, a pedir chuva! – que era já tempo de irem água abaixo e nos livrarem do atoleiro em que nos enterram a cada dia que passa. Mexeram no astro e agora sofrem as consequências, dizia-me um homem simples há muitos anos, uma vez convencido de que os foguetes espaciais penetravam mesmo nos céus e poisavam noutros planetas, sem de lá caírem, como natural seria se poisassem em baixo ou de lado. O conhecimento científico evoluiu muito e, entretanto, foi chegando aos poucos até aos locais mais recônditos do planeta. O homem adquiriu conhecimentos políticos e científicos, pese embora, como ser humano, dono duma mente permeável a todas as fábulas, mantenha crenças e mistérios onde tudo cabe, onde tudo é possível ser-lhe submetido. Em seu tempo, sempre nos confortam: o sol quando nasce é para todos. É o que oiço dizer, embora não faça fé acerca do dito, que me parece um tanto adverbial e pouco sério. Depois, sempre há aquelas claraboias de contentamento, que são as caras dos amigos de passeio, quando o famoso anticiclone dos Açores se impõe autoritário e nos dá o aconchego urbano, o conforto dos dias que nos pesam como chumbo… Mas o sol é, já deixei ver, a mentira que nos oferecem diariamente, para que adocemos o espírito já puído de tanta cicatriz e fiquemos moles, estáticos, assertivos e… contentes. Exijo a chuva, a chuva a cântaros, capaz de levar pelo nabal abaixo este míldio apostado em comer a planta e o fruto de Abril. Abril: águas mil! Aqueloutro da lambreta, ministro mimo-da-mamã, armado em manda-chuva, mas a estrangeiro mando, mandou cessar as reformas antecipadas a pretexto do esgotamento da segurança social. É um finório, um ex-futuro libertino que acredita na eficácia da chuva molha-parvos. Um sonso de beiços precisados de batom para o cieiro. Galo sem crista nem assunção de que poupa para dar aos estrangeiros ávidos dos nossos últimos cêntimos. A sul, a superstição do “cheiro a terra molhada” evoca fatalidade e morte; a norte são as “terras do demo”, segundo Aquilino, que vergam a coluna dos homens. Em ambos os casos, a água chovida é uma bênção para as sedes da terra, para a secura dos homens e para a enxurrada que é necessária para levar adiante os escolhos deste país assoreado de malfeitores a soldo. É agora o tempo das trovoadas e dos súbitos aguaceiros que, assim de rompante, mais ajudam à estragação. É água que estraga as plantas e frutos e apanha as barragens de surpresa, sem condições para o melhor proveito. Se tivesse de encontrar paralelo com as políticas dos postilhões de agora, diria que em 2014 choverá de cada um segundo as suas possibilidades e a cada um segundo as suas necessidades… Mentem para continuar a mentir, como num boletim “mentirológico” à moda antiga. Maldade que agora não for chuva sê-lo-á, depois, com juros, enquanto não formos capazes de nos precaver contra intempéries, que podem ser de sol ardente, de chuva copiosa ou de reles e mentirosa gente. Se a chuva for o pranto de quem diariamente não encontra as respostas para o seu futuro porque as bátegas cegam ou iludem os caminhos, então é este um imenso charco de água e sal onde saber nadar não basta e onde é necessário estender as mãos solidárias perante o iminente afogamento. E assim chegámos a este chove-não-chove, versão não meteorológica, em que a conversa sobre o tempo, afinal, tem lá que se lhe diga…