domingo, 20 de maio de 2012

O CÉU DOS PARDAIS

Por natureza sou aquilo a costuma chamar-se assustadiço. Não o serei por debilidade física e muito menos por fraqueza de cérebro, se me é permitida a autoavaliação, que não me tem dado grandes trabalhos ao longo da vida. Em meu abono, julgo que a explicação reside no facto simples de raramente estar onde os demais me enxergam. É esta uma prorrogativa dada a poetas e outros filhos das estrelas. Eu mesmo me surpreendo quando dou por mim distante do lugar que afinal me ocupava todos os sentidos e me pergunto: “como vim eu aqui parar?” Esta é a explicação que me ocorre hoje, entre prédios de muitos andares, semelhantes a caixotes empilhados, e me ter sentido perdido, como se caminhasse num qualquer deserto feito de areia e sol; de chão e céu; de gatos e pardais por única companhia viva. A todo aquele amontoado de quadrículas coloridas agora vazias e vestígios de árvores, quase como náufragos, houvesse aqui um mar, despenteados e atónitos, socorrendo-se da grossa estaca para a sobrevivência possível, resta-me um velho conhecido, azul, como uma estrada por cima da minha cabeça e, como disse já, os gatos e os pardais, aqueles no paraíso e estes, por enquanto, no purgatório. Estremeci. Em cada um daqueles favos, chamemos-lhes assim, vivem pessoas que, não podendo eu vê-las ou sequer ouvi-las a esta hora do meio-dia, por certo ali se acolhem, comem, dormem e também discutem, deitam contas à vida, amam e odeiam e fazem planos para futuros que ambicionam. Por experiência sei que raramente se conhecem uns aos outros e, salvo uma ou outra excepção, não se cumprimentam quando se cruzam na rua. Quanto a nomes, se decoradas algumas fisionomias, como se de uma só família se tratasse, chamam-se “vizinhos” ao que por vezes acrescentam o número da porta e o andar onde residem. A isto se chama um bairro, ainda há pouco tempo não mais que um matagal nos arredores da cidade, agora de gente cheio como um ovo. Este é o modo de vida ideal para alimentar a curiosidade mórbida de bastantes moradores. Alguns se entretêm a contar entradas e saídas deste ou daquela como se fossem encarregados de qualquer entidade estatística de bons comportamentos cívicos e morais. Outros trazem-se em cuidados quase verdadeiros por aquele vizinho da frente que tem deficiência motora ou, por quem será a ambulância do 112, que nos últimos 15 dias já parou três vezes dois quarteirões abaixo, com aquela sirene irritante e os pirilampos azuis que, reflectidos pelas janelas dos prédios parecem de mil carros e de mil pedidos de socorro, mitigando fomes que para aqui não são chamadas. Arriscam estes vizinhos, deambulando com o olhar de recanto em recanto, de varanda em varanda, de janela em janela – como os franzinos pássaros saltitantes – comer ou ser comidos… A tudo o que assisto ou pressinto e aqui dou notícia, devo esclarecer que hoje não vi, com estes, sim, que a terra há-de comer, qualquer assalto felino com êxito, pelo que a pardalagem pode dar-se por feliz por não ter “subido” ao céu. Já no meu bairro, na minha casa, logo a seguir a este de que vos falo, componho as notas há pouco rabiscadas para que façam sentido e conto-vos esta história que, afinal, não fosse o caso de ser assustadiço, como já contei, podia ser igual à deste bairro onde moro e tudo me parece normal como se estivesse no céu, na companhia dos meus gatos e dos meus pardais.