sexta-feira, 4 de maio de 2012

VAMOS ANDANDO

Faz bem andar e eu gasto o tempo todo com o bem que me faz: subo calçadas, quase quebro o pescoço de olhar os prédios periféricos, choro as árvores que já lá não estão, alcanço a parte mais antiga da cidade e desço por escadas ou rampas até onde estranhos repuxões de água se soltam como serpentinas e molham o chão, molham o chão, não mais que isso. Consumo diariamente a cidade com a ansiedade de quere-la e crê-la sempre minha. O tempo em que dentro dela estive na clausura dos horários a cumprir e o tempo em que a ausência me fez o coração ter saudades, agravaram este sentimento pouco mais que patético, pouco mais que pueril. Há um bom par de anos viajei ao interior da Torre do Relógio, por curiosidade e amabilidade de quem tinha obrigação de alimentar o dito. Subi-lhe o bojo por escadas a pique, periclitantes (já não me lembro de que material eram ou ainda hoje são feitas) até à cúpula, com a admiração de quem toma finalmente intimidade com um familiar antigo e ilustre, como é o caso. Lá em cima tive a sensação de estar aquém do tempo. Esta ilusão era ditada pelo facto dos enormes mostradores do relógio estarem então virados para fora indicando a hora, enquanto eu os via do avesso, não fazendo, naquele instante, qualquer sentido a hora exacta. As entranhas são um estranho elevador de pesos que o meu amigo se esforça em trazer para cima, através duma roldana de ferro escura e viscosa do unto que lhe põem. O coração – a máquina que tiquetaqueteia o tempo – é, como seria de esperar, um conjunto de roldanas impulsionadas pelos pesos que fazem tender os cabos puxados a braçadas de genica pelo meu amigo e anfitrião. Além do mais, a sirene que, felizmente para nós, não precisou de avisar de qualquer incêndio enquanto ali estivemos, casos contrário teria sido insuportável para os tímpanos… Se à Torre do Relógio me refiro de forma algo minuciosa e extensa, entre muitas razões que me ocorrem, direi apenas que tal se deve ao facto de se tratar, para mim, o elemento urbano que mais e melhor identifica Castelo Branco. Não ficaria satisfeito se não vos contasse o que sei desta Torre, tantas vezes olhada com desdém, mas que nos faz sentir albicastrenses quando, da cidade arredados, nos vem poisar nos olhos. Longe, como quem mitiga memórias em forma de saudade, lá aparecia um amigo que, por algum motivo, o destino fizera passar pela Cidade Branca, me dava conta das novidades: “está enorme a tua terra” e, a modos para compor: “aquele jardim das estátuas…” Ou seja, um moderno e grande que não passa disso mesmo em versão de cor de burro quando foge e o sempiterno Jardim do Paço, pago para ser visto; visto para ser pago… E eis que chega o tempo das vaidades, dos que querem ter nome por baixo como as estátuas do Paço, e em toda a placa ou peanha deixam assinatura e alarde de risíveis galões. Este não é já o tempo da cidade se exibir e triunfar; mas o tempo de quem quer sobrepor-se e patentear aquilo que afinal menos interessa para a história: as suas excelentíssimas pessoas. Os tempos da modernidade – para os que a pensam a tijolo e cimento – foram os anos dos mercados e das capelinhas; das construções e das capelinhas; das actas emendadas e das capelinhas; das capelinhas, do compadrio à volta dos escrutinados interesses albicastrenses. Em toda a cidade se fez carnaval com arcos e balões, foguetes e espertalhões em correrias mal disfarçadas para acertar a venda de talhões: “quem dá mais, quem dá mais, a festa vai começar!” A estrema que já foi baliza é agora o princípio de tudo; a gula dos espertos, sempre de atalaia ao negócio chorudo; a única nata subterrânea conhecida, além dos combustíveis fósseis e de rendibilidade semelhante. Os anos, a ASAE, o POLIS e tantas outras coisas camufladas que vão dentro destas siglas, retiraram lugares, encantos, árvores (quantas árvores?!) e cheiros que tardo em reencontrar, se alguma vez for capaz de o conseguir… Meto as mãos nos bolsos e ninguém vê que as cerro de raiva e de inquietação. Uma pedra de calcário salta no passeio calcetado à moda portuguesa. Tento recolocá-la com a biqueira do sapato e depois, com o calcanhar, para que se enterre devidamente. Parece ficar segura. Sem que ela o venha a saber algum dia, agradeço-lhe por me suportar o peso e a irritação pelo que vejo e me sugere filigrana de latão, desenhos de um alienígena louco e vou andando. O que eu não sei é quanto do que toco e do chão que piso, que faz do meu itinerário leito de passagem - mal não me fará - excepto o remorso de caminhar em cima de tanta tratantada.