sábado, 16 de março de 2013

TELAS FINAIS - PEQUENOS PRAZERES

- Sempre me saíste uma ave… - Disse José Cruz ao encontrar Alexandre no bar do costume, no centro da cidade.

- Levo-te só uma de avanço. Pede que hoje pago eu.

- Não estava à espera de te encontrar tão cedo.

- Ora, negócios… Combinei com um cliente, não saí e afinal teve de levar a esposa ao hospital por causa dumas dores, não sei, e fiquei com a tarde estragada.

- Estragada não, que tu não deixas…

- É.

Nestes convívios, quase sempre a dois, por vezes com clientes de Alexandre ou colegas de José Cruz, mas muito raramente, os amigos conversam tudo do muitas vezes nada que há para dizer.

É nestas alturas que o bancário arrasta o vendedor, a pretexto do jantar, até sua casa, onde Beta é apanhada sempre de surpresa.

- Anda até lá abaixo.

- Hoje não dá, pá. Tenho aí umas entrevistas…

José Cruz já conhecia o calão. Alexandre não era pássaro de gaiola. Era de vida airada, de pardal sem ninho e quanta inveja lhe causava!

- Se não tivesse espaço como tu lá em baixo morria em menos dum fósforo.

José dirigiu-se à jovem empregada e pediu:

- Traga mais duas e amendoins.

Estas conversas não têm mote, princípio ou fim, mas se a ambos agora perguntássemos sobre o enfado de tais convívios, sujeitávamo-nos a uma resposta torta. O que dizem (podem até repeti-lo outra e mais outra vez) não tem interesse de maior; o mais importante é como dizem um ao outro o que é mais íntimo e também o que de mais corriqueiro por aí circula.

Não tarda, os itinerários opõem-se e até custa acreditar como conciliam modos de vida tão distintos. Para José Cruz o itinerário está traçado, decorado há anos, não tem fugas possíveis. Já no destino, as rotinas mantêm-se. Amanhã poderá contar a mesma história de hoje, que pouca diferença fará um qualquer pormenor sem importância. O mesmo não se dirá de Alexandre para quem toda a cidade é a sua casa, todos os caminhos são o seu caminho, sem horas, sem roteiros precisos e sempre a tempo de inverter a marcha. Retém o cheiro das ruas e das casas como alimento das suas raízes empedernidas de citadino. Lamenta as ausências de força maior, mas também estas lhe acrescentam o prazer de se sentir bem dentro do seu espaço de eleição, por tudo e por nada, como agora está com o seu amigo de sempre.

- Um dia destes faço-te uma visita surpresa. Como vai a Beta, anda bem?

- Estás a prometer! Ela também ficaria contente de te ver por lá.

- Prometo e cumpro. Ainda lá tenho aquele uisquezinho doze anos?

- Claro, sabes que eu não bebo em casa.

A ânsia de ambos contarem tudo e nada tem enfim o tamanho de dois dedos de cerveja no fundo dos copos de vidro. Amanhã recomeçarão o que nunca estará acabado. Os mesmos caminhos separados por uma estrada ou uma rua invisíveis, ausentes de todos os mapas e cartas, apenas presentes nos resíduos, já em espuma, da cerveja compartida.

continua