quarta-feira, 20 de março de 2013

TELAS FINAIS - COMEÇA A VIDA

Quando à tardinha saiu do emprego, já o nosso bancário levava em mente a fórmula mágica de pedir Beta em casamento. Tinha falado com o seu gerente e estava praticamente tudo apalavrado: o empréstimo seria aceite e descontado em prestações mensais no ordenado, com juros bonificados, que assim procedia o banco com todos os funcionários.

Ainda teve tempo de ir a casa mudar de roupa, que tanto papel e conversa fazem transpirar como assentar tijolos, tirar a gravata para se sentir mais confortável e dar aqueles toques de arranjo, próprios de quem quer agradar e tem na aparência jovem a melhor forma de o demonstrar.

Todo o cuidado era pouco para que a conversa fluísse natural. As palavras tropeçavam-lhe no cérebro a quererem sair ao mesmo tempo e o pior seria que assim fosse, deitando tudo a perder. Primeiro falaria do empréstimo e só depois a proposta de casamento. Desta forma seria irrecusável para Beta, pensava. Teria tempo bastante. Por enquanto ainda ela se curvava entre agulhas e dedais e só por volta da hora de jantar chegaria a casa.

E se fosse esperar a bem-amada à saída da fábrica? Era uma boa ideia, mas não saiu da sua imaginação: foi Alexandre o autor da sugestão, que de psicologia feminina é enciclopédia actualizada. Por estes anos de euforia cega, Alexandre Monteiro não tinha ainda trabalho certo. Fazia biscates de mecânica automóvel e, boa parte dos seus êxitos com as mulheres, eram devidos às “bombas” por ele conduzidas para experimentação, em revisão, que lhe confiavam os clientes.

Encontraram-se os dois amigos de forma que nos atreveríamos a classificar de casual, se não fosse o hábito e a constância diária de tais encontros.

- Vais busca-la e falas com ela pelo caminho… Fica a conversa mais arejada.

Comemoraram aquele momento de felicidade antecipada com umas quantas rodadas de imperiais e despediram-se com um abraço franco e cúmplice, de grande amizade também.

- Primeiro a compra do andar, não te esqueças – advertiu ainda Alexandre, ao mesmo tempo que procedia à ignição do topo de gama que lhe fora confiado para mudança de filtros e óleo.

José Cruz disfarçou com uma pastilha de mentol o hálito da cerveja e pôs os pés a caminho. Não tinha pressa e tinha, ao mesmo tempo, toda a pressa do mundo.

Bateram as sete da tarde e, poucos minutos após, já as operárias saíam em grupos de três e quatro, gesticulando conversadoras. José Cruz mal podia esperar, a Beta tardava. Saíam mais mulheres, dezenas de mulheres em passo apressado. Nunca teria imaginado que ali trabalhavam tantas operárias. No banco onde trabalha apenas resiste a D. Adélia no pbx, já de idade avançada, ex-bancária em Angola no tempo colonial, e quando se reformar de sortes a vaga será preenchida.

Ao contrário, da fábrica de confecções saíam mulheres e mais mulheres, muitas delas quase crianças. Algumas, não muitas, eram suas conhecidas e acenavam-lhe de longe com um sorriso de cumplicidade gaiata. Por fim a Beta, vinha sozinha e compunha dentro da mala algo impossível de ver àquela distância, mesmo se compreendesse a quantidade de coisas que ela guarda naquele mundo complexo que é uma mala de mulher. Embora um pouco contrariado pelo atraso, tal era a ansiedade, José Cruz olhava para a namorado embevecido. Apesar de trazer o cabelo apanhado no estilo rabo-de-cavalo, Beta estava linda como nunca. Muito branca de carnes mas toda ela torneada como uma estátua de marfim, bamboleando ao seu encontro. No rosto redondo sobressaiam os lábios desenhados a vermelho em permanente sorriso. Haveria de explicar que o atraso se devera ao acabamento dumas peças para entrega no dia seguinte. Com a pressa, não reparou na falta de linha na canela da máquina e, como então lhe ocorreu pensar, quanto mais depressa mais devagar…

Reconheceram-se no mesmo instante mas só ela fez cara de surpresa.

- Que fazes aqui, Zé?

- Venho esperar-te, não te agrada?

- Claro que sim, mas… quando a esmola é grande…

José Cruz rebentava já se não contasse o motivo que ali o trouxe:

- Queres casar comigo?

O tempo de espera acabou por lhe baralhar a ordem das propostas tão bem ensaiadas e aconselhadas pelo amigo.

- Estiveste a beber?

- Não… sim, mas…

- Não, sim, em que ficamos?

- Não comeces já com essas coisas, não é nada disso, o assunto é sério, Beta.

José Cruz parou um pouco, respirou fundo, colocou a mão no ombro da namorada e assim esperava ir direito ao assunto que, de forma tão atabalhoada tinha iniciado pelo fim. Sentia-se agora mais seguro de si e tinha todo o tempo do mundo para detalhar os seus planos.

Beta aninhava-se naquele seu cantinho entre o braço e o peito do namorado, sentia por fim o conforto que não teve durante o dia de trabalho, entre os trapos e o barulho das máquinas em permanente taque, taque, taque, quando não dos berros do patrão ou do chefe de linha para que acelerasse, para que se lembrasse que alguém estava ali a pagar cada minuto de menor rendimento, cada suspiro que interrompesse a produtividade.

- Falei com o meu gerente e o banco vai conceder-me empréstimo para compra de um andar.

Ela sentiu que o braço dele a apertava com mais força à medida que falava. Com maior ternura também. Estava mais do que justificada a imprevista espera de hoje.

E por que não nos casamos primeiro, Zé?

Beta optava pelo o sentido prático das coisas, pois que o casamento nunca esteve em causa, mas tão só à espera da melhor oportunidade, e prosseguiu:

- O empréstimo fica mais acessível concedido ao casal… Podemos marcar já o civil e…

José Cruz tinha sido ultrapassado, mas disso não se importava, bem pelo contrário. Nestes assuntos as mulheres são bem mais objectivas e era escusado fazer as voltas do rio torto para chegar à solução que, sem o terem alguma vez conversado, era algo que ambos há muito guardavam e aguardavam.

Haveriam de casar-se pela igreja daí a pouco mais de meio ano, no Domingo de Páscoa. Já o sabemos nós; hão-de eles combiná-lo quando o tempo amadurecer e eles acharem oportuno.

O tempo corria por conta própria por isso poderiam também eles inventar o tempo e percorrê-lo a passo, conversando, dando tempo ao tempo.

Já entravam por caminhos de novas construções urbanas, talvez o local onde, sem o saberem ainda, queriam assentar arraiais e fazerem-se à vida.

Ali, onde há meia dúzia de anos era mato, árvores de fruto do lado de cá e mais ao longe se erguiam sobreiros, eucaliptos, plátanos e, de quando em vez, uma ou outra tília, está agora povoado de prédios de muitos andares, perfilados como pelotões militares, à espera de dono, como reza o cartaz de caixilho desengonçado à entrada da urbanização e, por enquanto, a fazer sombra ignorada por árvores de judas, chorões, jacarandás, tílias e outras espécies de que nunca viremos a saber a graça, por definharem e morrerem antes de deitarem rama, tendo a estaca por única companhia.

E foi por estes itinerários que Zé e Beta se aventuraram hoje. Se lhes contássemos o que acabamos de descrever, tê-lo-iam negado. Os seus olhares procuravam um ninho, um lugar lá bem no alto de um daqueles prédios enormes e de cores bizarras. O resto não é da sua conta, é o que pensam.

- Aquele, um T3… a família cresce e a mobília virá aos poucos. – Improvisava ele perante o ar embevecido da namorada ou, melhor dizendo, da noiva, que sobre esse assunto já não resta qualquer dúvida.

Para que nos entendamos, estes prédios não são ruins pelo tamanho ou pela opção cromática, não, o dano de que falámos é a adulteração do espaço urbano, a descaracterização da traça identificadora de um dado local, duma povoação e da cultura e da memória dos seus habitantes. Além disso, de outros males falamos agora, é a tratantada, em número igual ao dos tijolos utilizados, que foi necessária para justificar a sua construção.

Mas não é esse o assunto que preocupa o nosso casal. Quase ninguém dá importância a duas portas abertas na mesma direcção do vento; sabe do prazer da corrente de ar, se o calor for de causar suores. Na verdade, poderá mais tarde maldizer uma constipação ou até uma pneumonia. Na maior parte dos casos culpa esse desgraçado anjo decisivo chamado destino.

continua