quarta-feira, 13 de março de 2013

TELAS FINAIS - GENTE VULGAR


… cada uma das coisas boas da vida que se perde é a própria vida que perdemos.


Italo Calvino em a Especulação Imobiliária


Maria Alberta, Maria Alberta Sequeira da Cruz ou Beta para os amigos e para ela mesma, já que é assim que se apresenta quando alguém de novo lhe estende a mão ou inclina ligeiramente o rosto para a cumprimentar e dar-se ao conhecimento. A Beta, portanto, é rapariga para os seus quarentas e muitos nunca confessados, um jeito muito particular de balançar as ancas ao andar e um sorriso de muito batom e muita maquilhagem.

Porém, se a ocasião é solene, lá vêm aquelas febres que sempre atacam as mulheres, afirmação de independência, essas coisas, e então declara:

-Maria Alberta Sequeira, Cruz é do meu marido.

Em várias ocasiões sentiu uma espécie de ironia contida no rosto daqueles a quem assim se declarava, mas foi coisa que nunca a fez corar ou sequer bulir com o empenho da sua pose altiva.

Estes desabafos, porém, não são para levar a peito. Beta fala desta forma para que lhe achem graça. Talvez até tenha ouvido o dislate de alguma boca com fome de conversa, acabando por adotá-lo. Mesmo assim fala de barriga cheia, salvo seja, que já não tem idade ou, em seu dizer, “paciência” para essas coisas, iludindo os anos que leva de vida e felicidade escolhida, esses sim, não lhe permitem tais ousadias.

Além do mais, combinam estas falas com a sua personalidade: sabe o marido e sabemo-lo nós para o contar, que nos seus verdes anos, ainda na aldeia natal, os mais próximos a zurziam com epítetos de pelo na venta e maria rapaz. Se a tudo isto acrescentarmos o quanto custará a uma mulher carregar a vida inteira com o estranho apelido do marido, será moléstia censura-la.

Em tempos trabalhou numa empresa têxtil. Esta faliu e ela não teve outro remédio se não atirar-se aos trapinhos. Em casa fazia arranjos para fora e desta forma ajudava o orçamento doméstico. Agora pouco faz. “Estou cansada de não viver”, como é seu costume dizer.

José Bernardes Cruz, o seu marido, é bancário há mais de vinte anos e ocupa no banco, um desses cargos intermédios, à custa de moderníssimas nomenclaturas, não passando nunca de subalterno. Pelo menos é isso que dizem aqueles seus colegas a recibo verde e outros que vão passando temporariamente pelo balcão, enquanto não arranjam coisa melhor. O Zé, digo, o José Bernardes Cruz é um mouro de trabalho naquela função designada por gestor de conta.

Está já distante dos tempos de galã solitário e bem-parecido de estudante no Liceu. Apareceram-lhe as primeiras rugas e as entradas da calvície tornaram-se mais profundas, obra da profissão cheia de preocupações, objectivos e outras canseiras. “Comeram-me a carne, agora vão ter de me roer os ossos”, diz com ironia entre duas imperiais ao Alexandre, seu amigo de sempre. Conserva no entanto o ar aprimorado a cuja “montra” do banco obriga, veste fato completo e usa gravatas de seda de cores suaves e claras. O que o banco lhe retirou de dentro, vai compondo por fora…

No atendimento ao público nunca se esquece dos produtos financeiros, das colecções de moedas e outras preciosidades mais ou menos douradas, dos seguros e dos cartões de crédito que a direcção lhe impõe com metas a cumprir. É verdade que, no seu íntimo, é seu dever não endrominar o cliente, mas é a sua carreira que o exige e, mais do que isso, a sua sobrevivência e da sua Beta, já que a Sónia, o único rebento do casal, casou há três anos e vive com o marido, que é licenciado em direito, e tem emprego em Estrasburgo num qualquer gabinete da União Europeia.

Não se mete em política, o Zé. “São todos iguais”, diz. Manifesta quase sempre, com excepções de pormenor para alimentar conversa, o seu apoio a quem está no poder. “Se foram eleitos, foi o povo que os elegeu, por isso têm toda a legitimidade.” E mais não quer dizer ou ouvir.

(continua)