quarta-feira, 13 de março de 2013

TELAS FINAIS - DIZ QUEM SABE

Conheço bem o casal. Há um par de anos que sou visita lá de casa. Desde que vieram da aldeia, ele para o liceu e ela para a fábrica de têxteis e confecções, que sou amigo do Zé. É bom tipo. Já agora apresento-me: o meu nome é Alexandre Monteiro, sou solteiro e vendo ao retalho componentes electrónicas, no ramo automóvel, por conta duma empresa alemã. Isto de não ter horário para entradas e saídas, andar de terra em terra como os ciganos, não é para quem se estima e, casamento que viesse a acontecer seria sol de pouca dura. As mulheres gostam de ser apaparicadas e com esta minha vida errante não tardaria a que o caldo se entornasse. É assim que penso.


Apesar das ideias lhe saírem pela boca a velocidade capaz de atropelar algumas palavras, acrescentaremos nós, da frequente utilização do bordão “digamos assim” de que tanto usa e abusa, e da sua vida de celibatário, de pardal rabo de saia – consequência das andanças a que obriga a sua profissão e do meio mundo que diariamente lhe preenche todo o dia de sol e não poucas luas – Alexandre tem outro lado mais íntimo e culto; mais atento à vida, à leitura e às artes. Alguns dos seus clientes mais antigos afirmam mesmo que ele escreve poemas, embora tenha um certo pudor em mostrá-los. A amizade com o casal Beta e José Cruz é sincera, não porque tenha neles correspondência a este seu lado menos conhecido, mas antes pelo sentido humano e verdadeiro da forma como se relaciona com as pessoas e preserva as amizades mais antigas.


O Zé e a Beta moram, desde o boom do cimento armado dos anos 80, num sítio periférico semelhante a milhares de outros, incaracterístico, como se de velhos granitos e charnecas tivessem brotado arranha-céus, autênticas gaiolas humanas. Na verdade, mais parecem grades de cerveja empilhadas e arrumadas à espera de substituição do vasilhame. Moram num quinto direito com vista para a avenida e para o campo inculto a perder de vista nas traseiras, que esse ainda lá está, meio deserto, meio lixeira. A avenida está quase sempre às moscas. Aparentemente ninguém mexe, fala ou vê. Digo aparentemente. A verdade é que atrás duma arcada há um par de ouvidos que nos escutam; pela fresta duma cortina espreita-nos um olhar de mórbida curiosidade; ouvem-se sussurros de gente além das portas, latidos de cães obrigados a ser domésticos para o resto da vida, que não suportam quem é livre de andar, subir e descer escadas e passear na rua, como seria a sua natural condição.


Ninguém se conhece pelo próprio nome. Talvez deva dizer que a maior parte dos moradores não gostam de se dar a conhecer. Por isso é frequente a identificação pela fracção que cada um habita. Bem, é um modo de dizer…


Este tratamento frio e quase impessoal leva a que ninguém seja o que realmente é, mas por via do epíteto, algo sem nome, sem personalidade, sem alma, com excepção da D. Perpétua, solteirona e beata, a avaliar pelas vezes que vai à missa, deve ter o corpinho cheio delas.


Este comportamento é meio caminho para a livre interpretação da aparência, para o juízo de valor e, claro, para a coscuvilhice.


Não são raras as falsas preocupações pelo estado de saúde do vizinho do rés-do-chão, que é deficiente motor e se move em cadeira de rodas, sendo a verdadeira inquietação, não a evolução positiva da enfermidade, mas como se deitará ele com a mulher ainda nova e com bom aspecto ou como faz o papel de pai, se sempre está sentado e dependente da família como uma criança. As entradas e saídas deste ou daquela, pois, à do 2º. esquerdo, ou aquele vaidoso do 3º. frente, que vive sozinho, que segredos terá? Já para não falar do boato em que me envolveu, que só me deu vontade…


Estou a desviar-me daquilo que realmente queria contar-vos e já estava a entrar no meu próprio jogo.


Há dias comprei um par de calças de ganga. Aquilo é coisa universal e as bainhas precisam de ser subidas. Calhou falar nisso ao Zé, lá em casa, e a Beta ofereceu-se logo para me resolver o problema. “Traz as calças, que isso é num instante enquanto as subo”, disse-me ela.


Ontem de manhã, quando me preparava para mais um dia de estrada, cheguei à conclusão que não tinha um único par de calças lavado. Restavam as de ganga que nunca vesti e ainda permaneciam enroladas no saco da loja onde as comprei.


Lembrei-me por isso do oferecimento da Beta. Sabendo embora que o Zé já teria saído para o trabalho, a nossa intimidade e já longa amizade, não me inibiu de ir lá a casa, digamos assim, de calças na mão.


Quando a Beta me abriu a porta ficou um pouco assarapantada por não me esperar ali àquela hora. Menos não estava eu pelo que tive de passar de ouvidos, falas e latidos escada acima, que a ausência do Zé todas as especulações permitiam, mal sabia eu, mas isso é outra história…


Ela estava ainda em robe e, digamos assim, descomposta. A Beta é mulher de se ver só para depois de almoço…


Mas eu expliquei tudo direitinho e rapidamente para não causar mal entendidos, mesmo antes dela fechar a porta atrás de mim. “É num abrir e fechar de olhos”, garantiu-me ela, com ar simpático.


Tirou-me as medidas da virilha ao calcanhar, mediu depois as calças novas e pôs-se a descoser, a cortar, a alinhavar e, por fim, na máquina de costura, com meia dúzia de pedaladas, ali estavam as calças à minha medida como se fosse eu padrão universal.


Agradeci, pedi desculpa pelo inconveniente e, quando me preparava para sair, ela atirou-me: “Tens falado com o Zé?”, “Tenho, porquê, passa-se alguma coisa?” Quis eu saber. Foi então que a Beta me disse que o meu amigo andava esquisito, quase não falava, entra e sai de casa sem dizer água vai e à noite pula para cima dela, satisfaz-se e adormece que nem um passarinho. Já com a lágrima ao canto do olho, confessou-me: “Sabes, Alexandre, ainda ontem, estava com uma dor de cabeça daquelas, saltou-me para cima, começou no vai e vem, vai e vem, e não sei se para se aguentar mais um bocadinho ou por não chegar lá, ali esteve tempos sem fim, que eu só pensava se não se vem depressa deixo-me dormir”


Vá lá saber-se porquê, a homem que é homem, isto custa a ouvir, ainda para mais dum amigo como o Zé.


Mais não consegui que assegurar-lhe uma conversa de tirar nabos da púcara, digamos assim, para depois esclarecê-la, correndo o risco da intermediação nada saudável para o meu feitio.


Agradeci de novo o arranjo das calças, dei-lhe um beijo de despedida e acariciei-lhe o cabelo em jeito de solidariedade e carinho. “Passarei um dia destes”, disse ao fechar a porta.


Por mais que o tentasse, andei todo o dia com a queixa da Beta a bater nas paredes do cérebro. Hoje continua. É insuportável. Não é que uma pessoa de vida airada como eu não oiça destas e doutras, às vezes bem mais trágicas. Mas são de gente anónima, às vezes até anedota de veracidade duvidosa. Estes são meus amigos, porra!


Agora por gente anónima, digamos assim, será que o Zé e a Beta são protagonistas de algumas dessas histórias que se contam, de que nos rimos a bandeiras despregadas, entre duas rodadas de imperiais?


Isto só pode ser efeito daquele labirinto onde residem. As pessoas ficam mortas por dentro; parece que vivem mas há muito que não têm vida dentro de si. É como se arrastassem a carcaça, que é o corpo, em sucessivas rotinas, os mesmos gestos de sempre, as mesmas falas, o mesmo cansaço, as mesmas preocupações, a mesma incerteza no futuro.


A culpa só pode ser daquele maldito sítio sem alma e dos desalmados que o mandaram construir. Fazem-se sacrifícios a vida inteira a poupar para a prestação da nossa independência, da nossa casa, e vai-se a ver é isto.


Dentro dos edifícios há aquilo a que chamam condomínio, ou seja, pelo menos nas escrituras há um património com dono e é comum. Mas na rua não. A rua é anónima. É como se ali ninguém pisasse mas apenas escorregasse para se meter em casa, fugindo assim às angústias do mundo e a este deserto de fantasmas.


Ainda não vos tinha dito mas digo agora: sítios destes, e eu vejo centenas deles diariamente, todos iguais, como atrás contei, são cemitérios do pior que há porque enterram gente viva. As pessoas que lá vivem estão mortas e não sabem. É o que eu penso e dá-me pena, se bem que pena não é um sentimento nada saudável. O que é preciso é falar com as pessoas, agitá-las antes que morram, digamos assim, por completo.


Um bairro a sério, para além de habitação propriamente dita, necessita de serviços, escolas, empresas, espaços de lazer e convívio dos moradores (jardins, associações) mas, para além de tudo isso, precisa de memória. Se assim não for; se constituir apenas um espaço em que as raízes são unicamente as que ainda restam após a devastação das árvores que antes povoavam o local, para abrir caboucos e alicerces, em troca da implantação de gaiolas gigantes; absurdos blocos de tijolo, violadores do céu e da paisagem, então teremos de esquecer essa noção de “bairro”, como lhes chamam, ou aconchego da vida em comunidade e passamos a chamar-lhe “sítio”: lugar indefinido e artificial, sem raiz, sem memória, sem vida.


Hoje à noite, sem falta, vou falar com o Zé. Ele precisa duma boa conversa com este seu verdadeiro amigo.


Vão desculpar-me, digamos assim, por esta minha prosa. A verdade é que toda a gente sabe como estas coisas me indignam e sou frontal: digo o que penso e os meus clientes, que são também meus amigos já o sabem. Aliás, comercial que seja frouxo de conversa tem os dias contados. Posso gabar-me de ter um amigo em cada cliente. Até nos pagamentos. Quando não podem a trinta dias, pagam a sessenta, quando a coisa aperta até podem passar um cheque pré-datado, que o mal do dinheiro obriga a isso mesmo.


Não o disse, mas digo-o agora, se precisarem de motores de arranque, cambotas, juntas de cabeça ou mesmo de relés e outros componentes electrónicos, falem comigo. Há sempre uma atenção…


A razão de estar aqui, porém, é outra. Sou muito amigo de quem tem a incumbência de escrever a história e foi ele que me pediu esta arenga. Desculpem-me se fui maçador, mas é assim que eu vejo as coisas. Outro assunto é a pontuação, os pontos finais e as vírgulas, que são da autoria dele. E a ele dou então a palavra.

continua