domingo, 17 de março de 2013

TELAS FINAIS - CHEGAM AS RETROESCAVADORAS

A política era, para os recém instalados, meia dúzia de anos após Abril de setenta e quatro, o fruto mais apetecido. A euforia reinava na maioria autárquica. Não eram precisos programas (não os possuíam) ou de qualquer ideia inovadora, que não fosse deitar as mãos à massa. Está tudo à sua mercê: os serviços estão atulhados de projectos e mais projectos acabados sem nunca terem sido mais que papel com bonecos e quadrículas; as populações têm por resolver as necessidades básicas.

A febre obreira não necessita por isso de qualquer plano ou programa: está tudo por fazer. Hoje uma escola, amanhã uma junta de freguesia e a recuperação de infraestruturas, no outro dia um fontanário e o saneamento de uma aldeia à escolha, e tudo isso está inscrito nos programas da oposição mais séria e combativa. O avanço é casuístico. Não tardam as inaugurações com placa e assinatura do novo messias. É o início da obra.

Não tardam os anjos cinzentos, digo aqueles que são capazes de ler a alma das pedras e de quem a pode ter em saldo para vender ao melhor preço, adivinhar o sentido prático dos tijolos burros. Estabelecem redes de interesses. É agradável saber que são anjos; era importante não ignorar a sua cor cinzenta…

Os lotes de terreno, as quintinhas e pequenos bosques em redor da cidade, tudo entra no negócio, tudo tem um preço.

Há dinheiro e retroescavadoras. Há populações com carências de todo o género, por isso é urgente criar a oferta.

A maioria, eufórica, torna-se arrogante por tanta empreitada e a teia vai crescendo dentro e fora da autarquia.

Deliberações e projectos passarão para segundo plano; são um empecilho à obra. A cidade, antes apática e conformada, depressa se assemelha a um estaleiro gigante e cresce até ao limite, se o limite puder ser também oportunidade de negócio, conter a febre do cimento, do tijolo, do alcatrão.

O movimento no banco aumenta, o balcão apinha-se de gente que usa uma linguagem de solvência sem balizas, de olhos que brilham e se refletem naquele eldorado com paredes de mármore e balcões de madeira envernizada.

José Cruz sente também, apesar do imenso trabalho, o seu quinhão de felicidade. A magia do dinheiro tudo transformava em futuros auspiciosos, em sucessos garantidos.

Consumou-se o prodígio: em pouco tempo a cidade ficou irreconhecível; a velha cidade já não se revê nesta moderna urbe, maior do que alguma vez pode ser sonhada.

A exaltação não deixa ver que estes limites, estes novos marcos da civilização, em breve serão esquecidos, passado o interesse económico dos promotores e que, anos após, haverão de apontar baterias para o coração da cidade, para onde regressará o espelho da vaidade, o alvo de todas as atenções, as mesmas teias de interesses, a mesma euforia obreira, variando nos nomes das placas inauguratórias, mas mantendo o propósito dos que aí se mandam inscrever. A nova ordem, a nova obra.

Além do mais, são as obras o que são: umas capazes de persistir porque o cimento e as vigas conseguem resistir à erosão por mais tempo e outras que, não existindo já fisicamente, continuam na memória de quem as comtemplou ou delas tomou conhecimento de fonte segura.

Nunca saberemos nós o que vai na cabeça de outros ao observar uma obra, se o que lhes interessa é o proveito que da obra podem ter ou se, pelo contrário, sentir que os demais vêem o que se lhes mostra ao olhar, sendo eles a verdadeira obra. Restam uma placa, uma inscrição com o nome, as atribuições e as mordomias de um fulano de tal cujo sonho deixou inscrito em coisa qualquer para ser revisto.

Continua