segunda-feira, 25 de março de 2013

TELAS FINAIS - A VISITA

Sónia e o marido voltaram a adiar a vinda a Portugal para visitar os pais.

- Nunca sabemos quando há disponibilidade. – Disse ela à mãe pelo telefone.

- Tenho tantas saudades vossas, filha…

- Que se há-de fazer, mãe, julga que nós não as temos também? É a vida! O Paulo (assim se chama o marido) está sempre em viagem e com reuniões inadiáveis… Saem sempre as contas furadas.

Quando José Cruz chegou à tardinha soube da notícia. Pesaroso, não soube o que dizer.

- Convidei o Alexandre para o jantar.

Ela esboçou um sorriso de assentimento, embora estivesse à espera que ele a confortasse, amenizando assim as saudades que sente pela ausência da filha, levantou-se lentamente, apoiada na mesa da cozinha, vestiu o avental e dirigiu-se para a despensa, olhando vagamente as prateleiras sem saber ao certo o que a levou àquele impulso e muito menos o que quer encontrar.

Ele foi espreitar o mundo pela pequena janela da cozinha, cujo parapeito fica ainda mais diminuto por causa dos vasos de flores perfilados na metade fechada.

Deste lado só o campo existe. Ao fundo, fazendo contraste com o céu, o recorte sinuoso da serra, mais próximo, por enquanto, árvores de várias espécies, imitando ondas e, no logradouro, entulho, erva mal nascida e pequenos pássaros em vespertinos voos, preparando o recolhimento em duas oliveiras solitárias e sobreviventes da fúria construtora dos idos de oitenta.

Tudo tem uma aparência tranquila. Nas faldas da serra onde nasceu vê a criança que foi, correndo, subindo às árvores, de calções encharcados pela água da ribeira, onde procurava rãs e peixes mais afoitos primeiro, e depois lagostins vermelhos de água doce, quando estes invadiram tudo o que era água de ribeiro ou de barragem. “Como o tempo passa”, pensou.

- Zé, vai abrir a porta, deve ser o Alexandre.

De tão absorvido que estava com aqueles pensamentos, nem ouviu a campainha e estremeceu quando Beta o alertou mesmo ali nas suas costas.

- Vai já! – Gritou, como se a demora assim encurtasse.

Alexandre trazia embrulhada uma reserva de tinto alentejano, uma estrelícia de cores exuberantes ainda envolta no celofane e um sorriso que nunca se lhe apagava do rosto.

- Vês, - disse Beta, virando-se para o marido – como o Alexandre me compreende? – e, refeita da dor de há pouco, - era mesmo o que estava a precisar: dum mimo como este!

- Vá, não exageres, é só uma flor. – Quis acalmar o amigo.

O cheiro apetitoso do jantar impregnava já a cozinha.

- Vão para a sala. Já não demora muito.

José e Alexandre obedeceram. Tocavam-se, sorriam e comunicavam com frases curtas e imperceptíveis para Beta.

Quem agora os visse, diria que não se enxergam há anos. Nada mais falso: estiveram juntos não havia mais de duas horas. Encontraram-se no bar do costume, beberam três rodadas de imperial e falaram do que então lhes ocorreu falar. O convite para jantar foi feito e logo aceite quando se despediam. Hoje não era dia de entrevistas para Alexandre, vinha mesmo a calhar.

Na sala, sentados nos habituais sofás, o convidado olhou de soslaio para os livros da estante e conferiu os autores: Cervantes, Dumas, Verne, dois volumes, e Shakespeare.

Não entendeu assim José Cruz:

- Está tal e qual como a deixaste a última vez. – E apontava para a garrafa de uísque.

Alexandre não lhe fez a desfeita e anuiu com uma gargalhada:

- Venha de lá a menina…

A televisão estava desligada como convinha:

- É só desgraças. – Disse José Cruz.

- A propósito, já ouviste falar da tramoia que envolve por aí uns banqueiros e amigos com offshores…

- Não se fala doutra coisa lá no banco.

- Não me digas que o teu banco também está metido nisso!

- És parvo ou quê. Tudo gente séria!

- Como nós…

Alexandre soltou de novo uma forte gargalhada. Beta assomou à porta da sala, querendo averiguar a que propósito vinha tal algazarra. Surpreendida pelo imediato silêncio de ambos, disfarçou:

- O jantar está pronto. Gostas de jardineira, Alexandre?

- Eu só não gosto que me batam.

- Então caminhem para a mesa.

Os homens sentaram-se à mesa e Beta imediatamente colocou pratos, talheres e copos. Trouxe depois uma terrina fumegante com a jardineira.

- Que cheirinho, disse Alexandre.

Beta sorriu, colocou a estrelícia no centro da mesa e, virando-se para o marido, pediu:

- Zé, vai à cozinha buscar os guardanapos e o pão que me esqueci. Traz também o vinho.

Estavam de novo todos juntos. São como uma família, mais, os laços de amizade que os une respira-se naquela sala tão pouco utilizada e agora tão repleta de satisfação. A jardineira era o pretexto para este apetitoso convívio de irmãos cujo sangue é apenas o que a cada um faz bater o coração para que vivam e convivam.

- De que tanto se riam há pouco?

Perguntava Beta enquanto servia os pratos. Primeiro o de Alexandre, depois o do marido e finalmente o próprio.

- Nada, cortou José Cruz.

- Não sabia que “nada” dava vontade de rir…

- Falávamos de banqueiros corruptos - esclareceu Alexandre – daqueles que quando vocês vieram para aqui morar esbanjavam dinheiro como água, era só facilidades, lucros, investimento, alguns estão à perna com a justiça.

- Não lhes acontece nada, como é costume. – Atalhou Beta.

José Cruz e Alexandre concordaram.

Este era o tempo em que os jornais noticiavam a crise. Como bem sabemos, noticiam os jornais aquilo que os donos mandam e estes mandam noticiar crises, falências, perigos de rupturas financeiras e outros eufemismos que têm o significado mais prático e doloroso no corte de salários, nos despedimentos colectivos, na repressão dos direitos cívicos, na carestia de vida e na extinção de serviços públicos para quem vive, claro está, da venda da sua força de trabalho. Aqueles que esbanjaram, corromperam e delapidaram os cofres do estado e actuaram como modernos bandoleiros, pilhando para si e para os seus, serão sempre pessoas bem-intencionadas, gente de bem, porventura iludidos por gente sem rosto, mas sempre gestores de honestidade à prova de bala. Nunca serão punidos, nem a pena que venham a ter compensará todo o mal que já fizeram.

Beta sabe de tudo isto por experiência própria, mas hoje não quer ouvir mais tristezas. Já lhe bastam as da ausência da filha:

- Vamos lá mas é falar de coisas boas.

Beta, ao contrário dos dois homens, estava elegantemente vestida como é seu costume. Tinha tirado o avental. O vestido liso, azul-marinho, de malha fina, fazia sobressair a curvas das ancas e o volume do peito. No generoso decote pendia um colar de pedras grossas de pechisbeque com matizes a condizer com o vestido e os lábios carnudos, agora um tanto desbotados pela jardineira, apresentavam um fino contorno avermelhado, desenhando as comissuras de forma quase perfeita.

Eis a sua vantagem quando impõe a mudança de tema na conversa.

- Estive hoje na loja onde trabalha a tua namorada, Alexandre.

- Minha namorada?! – Disse ele com espanto.

- Sim, aquela que me apresentaste uma vez no centro comercial. Ela adora-te.

Alexandre ajeitou-se melhor na cadeira, serviu de vinho o copo vazio, deu um pequeno gole e atacou:

- Eu também gosto dela, mas somos apenas amigos.

José Cruz nada disse: limitava-se a assistir, e Beta, com um sorriso de censura, retorquiu:

- Nunca mais tomas juízo, rapaz…

Ora, juízo! Para que diabo queria aquele “juízo” de que falava Beta! Que Alexandre não é pássaro de gaiola já o sabemos, mas compromissos do género deste que agora se fala, para os anos que leva de alegre celibato, mais do que gaiola, seria um castigo, uma prisão: as mesmas penas que, em sua opinião, cumprem os seus amigos em troca duma vida de compromissos e de canseiras.

- Ná, nessa não caio eu. – Disse com ar convencido.

Finalmente, José Cruz decidiu intervir:

- Que mania a tua de arrumares toda a gente. Saíste-me cá uma casamenteira! Parece que não conheces o Alexandre…

A conversa tomava agora caminhos sem consenso e Alexandre não teve outro remédio que não fosse o da mentira piedosa:

- Bem faz-se tarde e ainda tenho que rever umas tabelas novas…

- Já, Alexandre? – Lamentou Beta.

José Cruz encontrou no lamento o pretexto para criticar a mulher:

- Começas com essas conversas de sacristia…

Despediram-se no entanto como sempre fazem: o amigo é como família, voltará quando lhe apetecer. Tem ali “uma casa às ordens”.

Já nas escadas, Alexandre sentiu passos junto à porta de Perpétua. Parou para escutar melhor e vieram-lhe à cabeça algumas interjeições de indignação. Não as repetiremos nós.

Estava uma noite fresca. Silenciosa sempre.

“O melhor é ir para vale de lençóis”, disse entre dentes.

continua