terça-feira, 10 de abril de 2012

PASSEIOS À VOLTA DO CORAÇÃO

O tempo, a mesma porção de tempo, não é igual para a pedra e para a flor. Tampouco para os homens, pesem as circunstâncias. A pedra resiste para além do tempo dos homens, mas são as flores que ficam presas ao seu coração. A ânsia era grande em conferir tudo o que ainda habitava a sua memória. Mal chegou à cidade, não tardou que o João não calcasse a relva, esfregasse as mãos nos troncos das árvores e olhasse em todas as direcções, como se quisesse identificar algo que, revisto por alto, lhe pudesse passar despercebido. Até os desmedidos prédios da zona onde tinha morado outrora lhe causaram demorada atenção. Na verdade, fascinavam-no os prédios altos, que a sul não tinham a mesma visibilidade nem a mesma constância. Por fim, delongou um pouco mais o olhar na varanda do terceiro frente do bairro da Granja e, enfatizando com os ombros um gesto de aconchego e desculpa, balbuciou: - Nem todas as coisas grandes são grandes coisas… Tudo tinha agora uma dimensão distinta daquela que durante uma década não pode desenvolver-se, fechada que ficou num escasso recanto da sua memória de infância. As ruas, outra memória, durante a ausência, adquiriram nomes de itinerários de pueris desmandos; de pequenos segredos: - Era por esta rua que me escapava para o bairro de cima… Tinha um muro enorme que me fazia sentir herói quando o transpunha e afinal é pouco mais que um lancil. As capitosas árvores dos arredores ainda lá estão de sentinela para o que der e vier! Isso era, sempre foi, motivo de maior tranquilidade e segurança; o mesmo que respirar e estar vivo. O olhar do João saltava dum lugar para o outro como um pardal que procura abrigo e alimento. Apesar de tudo estava tranquilo, apenas um pouco curioso, como quem quer descobrir num segundo a diferença entre o que vê e o mundo que a sua memória lhe foi ditando ao longo do tempo ausente. Vieram-me à memória a mim, não a ele, os cheiros da Rua de Santa Maria, que cheguei a pensar ter mais refeições que as habituais na minha casa. Porventura, o alho e a cebola refogados ficavam impregnados nas paredes e um só almoço dava aroma ao meu olfato para uma semana inteira… No passeio, ia contando como se sentiu no dia em que se empoleirou na árvore da Devesa e caiu desamparado, sem dois dentes e um choro convulsivo com maior dose de medo pela reacção dos pais, que a dor pela perda dos dentes de leite lhe provocava; quando, no Passo encontrou uma moeda no fundo dum lago e a retirou à custa de perseverança e uma manga da camisola nova encharcada de água e lismos verdes; das quedas de bicicleta que valeram sustos e preocupações. Tinha-lhe previamente explicado que a cidade se modificara entretanto. Contei-lhe dos prédios de muitos andares, já muito além do relógio da Torre, dos chafarizes e da paisagem urbana asseada e branca como o nosso terraço da Granja. Ateve-se na Devesa. - Lembro-me da tasca do avião. Agora o avião está cá fora, é enorme e tem uma pista de aterragem que borbulha água. A nascente das sanguessugas, gracejou. - Vamos em frente, ainda nos falta ver muita coisa, respondi-lhe. Há muitos anos, com o meu pai, perdi uma dúzia de “costis” – como lhes chamávamos – na encosta norte da serra da Cardosa. Queríamos passarinhos para não sei quê e foi ali que decidimos caça-los, já que eu era um reconhecido especialista. Nem pássaros, nem armadilhas. Não fomos capazes de descobrir um só que fosse, tal era a camuflagem... Se chorámos? Não! Rimo-nos até mais não podermos e ficamos abraçados durante tanto tempo que ainda hoje recordo esse abraço. - Vamos pelas Isabaldeiras até à Cardosa, disse eu. Não é fácil, mas já não é tão difícil como outrora. Vista dali a cidade cresceu duma forma extraordinária. Está irreconhecível! - O Vale do Romeiro é aquele pontinho verde além, argumentei para afirmar o meu conhecimento do terreno. O alcatrão separava-nos agora das correrias monteses dos tempos da fisga e dos arranhões… - O ar é bom. Cheira a árvores e a terra, dizia o João em jeito de solidariedade, tendo em conta o cansaço que ambos sentíamos nas pernas. - É, respondi-lhe sem folego para mais… Não foi só a cidade que se alterou; nós também já não somos as mesmas pessoas e quem passa por nós também já não lida da mesma forma. Parece que hoje as pessoas têm mais pressa do que as de antigamente. O problema é que fogem e não têm para onde fugir… Provavelmente cegaram de tanto ver e agora estão à procura daquilo que nunca viram mas sonham um dia encontrar numa rua ou beco, num telhado, inesperadamente ao alcance do seu ângulo de visão, debaixo duma pedra mal calcetada. O mundo é assim: dá tanta reviravolta que nos faz perder o norte porque não alcançamos o que antes tínhamos aos pés. Em contrapartida, faz-nos sonhar. Se a nossa matriz é a que pisamos, podemos sempre orientar-nos pelos cheiros, pela memória dos que para aqui nos trouxeram e pela bússola do próprio coração, tenham lá o tamanho, as cores e o desenho que tiverem.
(Inserto na Agenda Cultural de Castelo Branco Abril a Junho 2012)