segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

PEQUENAS COISAS

O pião e o berlinde, o arco e a bilharda; a fisga,
a bola e o botão; a carica velha disfarçada de ciclista,
eram os satélites predilectos do meu universo
– como lhe chamo agora – todo mundo, e o mundo era a minha rua.
De longe a melhor de todas as ruas:
para as corridas intermináveis,
para a incessante procura de esconderijos únicos,
para a invenção de novas brincadeiras.
O Tó Luís era o mais inquieto e sol de pouca dura,
a Maria dos Santos e a Rosa Maria quase nunca saíam de casa,
mas com Quim Manel passava horas sem conto.
Com ele e com a minha avó Teresa,
que me deu cuidados de mãe e toneladas de Farinha Amparo,
e me levava às missas do Mês de Maria
com a fé na promessa de um gelado no regresso.

Apesar de tudo, os dias decorriam ao ritmo de carrossel de feira,
como uma festa sem data, sem termo e sem publicidade
ou outras banhas da cobra.
Havia ainda um largo e nele um chafariz
com água que apenas os animais aproveitavam
em demorados, quase intermináveis sorvos,
– como fazia o macho do Barba Danada –
que lhes matava as sedes presentes e talvez outras mais antigas
e não saciadas no exacto tempo.
Eu bebia com o olhar toda aquela água
até sentir o estômago farto e inchado de tanta imaginação.
Dos pequenos acidentes, lembro-me apenas de um braço partido,
curado em água e sal e vinte dias de paciência,
arranhões vários, sem grande significado,
e uma pelada, que o meu pai debelou com muita bonomia
e algodão embebido em Trichophytina.
Os dias eram inteiros e enormes.
Não havia meio-dia, nem as inclinações do sol faziam qualquer sentido.
O tempo corria até ao fim da rua
e regressava com a mesma pressa de chegar a lado nenhum.