quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

GLOSA DO TEMPO



Primeiro vieram os comentadores desportivos

mas como o desporto para mim é para praticar

e não para dar à língua, nunca lhes dei atenção.

Ainda as chuvas davam os primeiros sinais

de mudança climática e aí se perfilavam

os comentadores da seca. Nada faziam,

apenas gastavam saliva e ameaçavam com a extinção

do planeta para o dia seguinte, para a década seguinte.

Quase todos queriam notoriedade e não os quis ouvir.

Depois vieram os comentadores de incêndios florestais:

almanaques de contrafogo e ordenamento territorial,

que nunca saíram das gavetas. As suas vozes queimavam

e eu ardia em impaciência ano após ano.

Finalmente chegaram os comentadores da pandemia:

conhecem o vírus, as línguas que ele fala;

elaboram estatísticas e mapas cromáticos, confinam-me.

Tentei inteirar-me o mais que pude e entrei nos sins e nos nãos

do comportamento aconselhado… e depois banido.

Agora é tarde e todos os poros do meu corpo se arrepiam de medo.

Integro uma lista algures que não conheço.