quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA DOS CHEIROS IV

Se alguma coisa em mim clama por um regresso ao passado é, sem pestanejar, o cheiro da mercearia ou, para ser mais abrangente, da loja dos irmãos Francisco e José, mais conhecida por casa dos Fusqueta.
Não sei porquê, mas os manos recusavam a alcunha. Recusavam-na com inusitada violência ou, de outra ordem mais comercial, se o cliente tivesse pergaminhos para o merecimento de engolir e calar. E até para estas ocasiões, sobretudo para estas, era preciso um certo faro, não estivessem os manos de cabelos em pé com o negócio, e nestas alturas levavam tudo a eito.
Refiro-me, no entanto, aos odores do estabelecimento. Tudo tinha um cheiro próprio e, ao mesmo tempo, era a fusão dos aromas que tudo impregnava.
Junto ao arroz, ao açúcar, ao café e ao feijão, não em sacos de quilo hermeticamente fechados e data de validade como agora, mas em gavetões de madeira que formavam um ângulo agudo de boca para cima, havia um cheiro doce, um cheiro de rara mistura de perfume oriental. Doce era também o do café acabado de moer. Provavelmente o meu preferido, o que mais me extasiava. Ao balcão da retrosaria, apinhado de aprendizes de modista, conferiam-se as cores das linhas, dos botões, dos fechos e dos tafetás com os trapos da mesma cor, subtraídos à bainha do vestido em acabamento.
- Não é bem este azul, senhor Fusq... Chico.
Tanto podia ser o início duma grande peregrinação por um azul daquele tom, como levar aquele à falta de melhor, evitando a canseira. Cheirava a pouco...
A balança decimal e os respectivos pesos em ferro, perfilados em seu redor, são para as batatas e o carvão, e destes, felizmente, não se desprende qualquer odor. Apenas deixam no ar uma nuvem de poeira fina, que em breves segundos ganha novas qualidades e desaparece.
- Escusam de se pôr aí em cima, que a balança não pesa.
Gritava o mano Francisco quando alguém mais atrevido subia para o estrado da balança, que na régua dividia por dez o peso suportado.
- Desculpe, era só para ver.
- Ver é com os olhos, não é com os pés.
Rematava o comerciante com ar de poucos amigos.
Por altura do Natal era o cheiro a bacalhau. Nada escapava ao cheiro salgado do peixe da consoada, incluindo o balcão das especiarias. Por graça, o empregado mais antigo na loja, costumava dizer àqueles com quem tinha mais confiança:
- Só com este cheiro bebia já um copo de três...
Mas ficava-se pelo cheiro e pela graça. Era um modo de falar.
- Meio quartilho de azeite, senhor Fusqueta.
- Fusqueta é o excelentíssimo senhor seu pai.
Respondia o comerciante irritado, dirigindo-se ao mesmo tempo para o engenho do azeite que, tal como o do petróleo, obtinham o líquido por sucção, proveniente de um bidão escondido sob um aparato cilíndrico de vidro, accionado por uma manivela.
- E que mais vai ser?
Perguntava o homem já com outro ar.
- Ponha-me também 250 de bolachas maria, têm cá um cheirinho...
E ficava sanado o conflito para ambos, que não há rancores duradoiros por coisas tão sem importância.
O soalho era de madeira escura, como o eram os balcões, vitrinas e as caixas para medir, ao litro, o aviamento de toda a espécie de feijão, ainda impregnado de cheiro a ervilha à mistura com o mofo das medidas. E se a freguesa mandava assentar, paciência:
- Mano Zé, traga lá o livro.
O mano Zé tinha o saber de guarda-livros e em muitas ocasiões o nariz apurado para o cheiro a calote.
- Pago ao fim do mês, fique descansado.
Talvez para adoçar a boca ou apenas querer ser simpático, o senhor Francisco acrescentava muitas vezes ao troco dois ou três rebuçados, que eram de açúcar cristalizado, mas cheiravam a mel e a doces que na verdade não continham.
- Obrigado e volte sempre.
Dizia com delicadeza aprendida em muitos anos de experiência. Com algum esforço também, por lhe contrariar o feitio irritadiço, e isso sim, empestava.
A par daquelas guloseimas, havia ainda um enorme expositor com frascos de vidro transparente, em forma de pinha, com doze qualidades de rebuçados peitorais, chocolates, chupa-chupas e caramelos, cujos aromas se adivinhavam vistos por fora, mas que só se sentiam realmente quando os frascos eram destapados com vista a servir o freguês guloso.
Em suma, foram cheiros de um tempo que não voltei a experimentar.
Quanto ao resto, não sei o que foi feito da mercearia dos Fusqueta, mas cheira-me a esturro.

3 comentários:

  1. Bom dia João
    Estes comércios foram fechando.
    Com o tempo, as pessoas foram-se habituando aos centros comerciais onde os cheiros são outros.

    O Bento Moteiro - lidacoelho - é um exemplo disso.
    Junto à Igreja lembro-me de haver cinco Tavernas.

    Hoje resta uma. Foi tudo restruturado e é só lá que conseguimos encontrar alguns produtos do antigamente.

    Parece que o Senhor Fernando lá se vai safando. O pessoal que gosta de actualizar o jornal da caserna vai para lá.

    Entre um café ou dois copos de tinto ficam logo informados de tudo. Quem morreu ou quem emigrou ou ainda aquelas que se descuidaram e foram apanhadas com a boca na botija.

    O meu filho costuma dizer que aquela tasca funciona como o correio da manhã.

    Os teus últimos trabalhos poéticos são muito bonitos.
    A tua caneta anda cheia de boas recordações com muitos cheiros, perfumados ou até mesmo ao natural.

    ResponderEliminar
  2. "(...)mas em gavetões de madeira que formavam um ângulo agudo de boca para cima, havia um cheiro doce, um cheiro de rara mistura de perfume oriental. Doce era também o do café acabado de moer."

    Vejo-me a entrar na mercearia do Sr. Palha (não era alcunha, era mesmo o apelido)pela mão da minha avó.
    Os mesmos cheiros, as mesmas imagens... E o sabor da baunilha nas bolachas de que eu mais gostava. Mas realmente, o cheiro do café sobrepunha-se a todos os outros, quando o moinho se calava.
    Os frascos de vidro, grandes cheios com as cores do arco-íris... Doces, memórias!...
    Muito envolvente esta sua prosa que, mesmo sem querer - penso eu - é só uma maneira diferente que o João tem de fazer poesia.

    Um beijo

    ResponderEliminar
  3. Deixa-me dizer, em jeito de confissão, que me cheira a esturro....
    Perdi-me por aqui e deixei a sopa ao lume!! ( Não, nada de esturro por aqui)

    Gosto quando nos pões lá, nos espaços e no tempo destas tuas estórias deliciosas.
    Estão os cheiros, os sons e os tons que me (en)cantam. Sem saudosismo, são "Prova de Vida".

    Há mais?!

    Boa noite, MJ

    ResponderEliminar