terça-feira, 22 de setembro de 2009

GAIVOTAS EM TERRA



- Ora então o que é que nos dói?
É a sacramental pergunta que o Dr. Silveira faz a todos os doentes ou pelo menos a todos os que o procuram com a suspeita de que algum mal lhes tenha entrado.
À primeira vista – melhor seria dizer ao primeiro ouvido, mas não soaria bem – parece uma provocação do médico, ao querer-se incluir na dor que obviamente não tem. Há mesmo quem veja no tratamento uma certa atitude de subestimação da própria dor, como quem diz, falas em nós porque não te dói, ou então duvidas que a nós doa. Até porque cada dor é uma dor; a minha não é a tua, e assim por diante.
Mas também há quem ache graça e julgue carinhosa a utilização da primeira pessoa do plural. Afinal o clínico está a colocar-se do lado do paciente, tentando assim descontraí-lo de modo a que exponha abertamente os sintomas da apoquentação.
No fim de contas há gostos para tudo, tendo embora em consideração que é muito mais fácil compreender a dor alheia que suportar a própria.
No entanto, a maioria dos doentes tem-no por atencioso e dedicado.
Está na moda um certo conceito de profissionalismo que muito pouco lhe diz; prefere chamar arte ao que faz há quase quarenta anos.
- Se quisesse ser comerciante, abria um talho!
Seja como for, apesar do original acolhimento aos utentes do Centro de Saúde, o que não retira uma vírgula à sua competência como clínico geral, o Dr. Silveira tem um senão que intriga os seus pares e os pacientes mais carentes de atenção: não participa em congressos, não se actualiza em seminários, nomeadamente no estrangeiro e, como se isso não bastasse, provavelmente por falta de arejo, não é pródigo na prescrição de medicamentos. Não lhe são conhecidas outras aversões, e desta os motivos não estão completamente esclarecidos.
- Que ganhamos nós (e volta a este nós, que às vezes é inexplicavelmente abrangente e outras impessoal e enigmático) com esses conclaves?
Esgrime ele contra os que sobre a matéria se manifestam do lado oposto, e acrescenta:
- Num país com carências de cuidados primários de saúde, com listas de espera, que já não são listas de espera, são listas de desespero, que me adianta saber sobre o último grito em válvulas mitrais ou a nova marca de comprimidos para o tesão?
Ninguém o demove das suas convicções. Nada o faz mudar de atitude, nem evita que se irrite ao falar no assunto.
- Mas há assim tanta novidade que o vade - mécum não contemple?!
É quase sempre a conclusão definitiva das suas orações de competência.
- Bem, vamos lá a ver: o que é que nos traz por cá?
Acrescenta depois, já com um sorriso largo, envolvendo-lhe o rosto por inteiro, fingindo que toda a conversa anterior nunca ali ocorreu.
- São as mesmas dores de cabeça, Sr. Dr. ...
- E você acha que eu lhe devia receitar um saco de medicamentos, e como não o faço julga que não me interesso com o assunto, não é verdade?
- Não é isso, Sr. Dr. é...
- É. É, mas não devia ser. Puxe lá a manga para medirmos a tensão.
O contacto físico acaba por amenizar a conversa, trazendo de novo o sorriso à cara do Dr. Silveira e, por contágio, a quem o consulta por mágoa, dor sentida ou aflição.
Salvo quando uma urgência se anuncia em forma de sirene de ambulância, quando a teimosia duma recaída apresenta sinais de agravamento do estado de saúde ou quando não são claros os sintomas e os males ficavam difíceis de diagnosticar, o Dr. Silveira é um homem calmo e de bom ouvido. Só mesmo a praga das reuniões o conseguem tirar do sério.
Também um dia o consultei por causa duma impigem que me apareceu na barriga da perna direita. Enquanto foi insignificante não dei por ela e só um dia, ao tomar banho, reparei naquela mancha vermelha com cara de poucos amigos.
- Bom dia, Dr. Silveira.
- Gaivotas em terra... – gracejou ele – o que é que nos conta?
- De especial, nada. É a corrida do dia a dia...
Foi o que me lembrei de momento para por naquela conversa. Afinal de contas as mazelas que levava não estavam à vista, e qualquer queixa logo de entrada parecia-me um pouco exagerada.
Talvez pelo meu silêncio, o médico resolveu dar-me alguns conselhos sobre o stress e a forma mais eficaz de o combater. Falámos um pouco de tudo, até do nó da gravata que, segundo ele, eu devia deixar mais frouxo. Vieram à baila as preocupações que tinha sobre envolvimentos pouco claros de colegas seus com laboratórios farmacêuticos, mas não falarei aqui da sua opinião.
Eram já horas de almoço. Ambos roçávamos os rabos nas respectivas cadeiras e não sabíamos que era o ratinho da fome. A conversa estava interessante e nem um nem outro dávamos o passo, quer dizer, a mão, para o cumprimento de despedida. Foi por isso que me lembrei do que me tinha ali levado.
- Já me esquecia: tenho aqui uma impigem na perna direita, Sr. Dr.
Perplexo, o médico baixou os óculos meia-lua e fixou-me como que a tentar perceber a que vinha semelhante despropósito. Coçou com o polegar a ponta do nariz e, depois de uma sonora gargalhada, pediu-me:
- Ora, ora, mostre-nos lá isso, homem.
Examinou com cuidado e prescreveu uma pomada, sem mais qualquer palavra, para além da posologia respectiva.
No fundo fui eu que fiquei incomodado com tanto tempo desperdiçado, mas a terapia foi benéfica para os dois. Estou convencido. Ainda assim quis redimir-me da forma mais simpática que o momento aconselhava:
- Convido-o para o almoço. Aceita?
O Dr. Silveira desejou-me as melhoras com um enérgico aperto de mão, levando-me assim até à porta do consultório e, com o seu jeito ao mesmo tempo firme e cortês, piscou-me o olho e declinou:
- Não há almoços grátis, meu caro. Nunca se sabe o que pode contagiar-nos...
Lembro-me de ter tentado um bom par de argumentos a meu favor. Abri ligeiramente a boca, também mostrei ao médico a palma da mão, fazendo sinal para reformular o meu singular convite, mas ele foi peremptório:
- Somos todos iguais, excepções incluídas, o resto são erros de gramática...

4 comentários:

  1. Oi João!!!
    Li o seu texto...
    Aqui no Brasil não da nem que tempo de dialogar com um médico....
    Às vezes o mesmo nem olha em seu rosto...
    A estrutura aqui esta falida...
    Os médicos estão esgotados...
    Os pacientes do mesmo jeito...
    Mas hoje em especial...
    Venho aqui para agradecer suas visitas...
    Dizer que você é uma pessoa surpreendente...
    Uma pessoa que traz ternura quando vai em meu blog...
    Sinto-me bem com seus comentários e trechos de poesias deixadas...
    Acredito que tenho mais amigos aqui neste mundo virtual real...
    Do que em minha vida pessoal...
    Feliz por ter você lá no meu espaço...
    Um tarde feliz a você!!!
    Bjks...
    Chrys
    ;)


    "Linda imagem"

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  2. Muito agradável de ler.
    Fiquei a gostar do Dr. Silveira...Pela sua lucidez no que concerne às distintas velocidades a que anda o país: a dos endinheirados (dos congressos ao estrangeiro sobre válvulas mitrais e afins) e a dos outros (das filas intermináveis no acesso aos cuidados básicos de saúde)...
    Progressos sim, mas estruturados, se não um dia, a casa cai.

    Gosto destas "estórias que eu sei lá"

    Um beijo

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  3. Ola
    Parabens por mais um excelente trabalho
    Precisavamos de muitos médicos assim
    Não tenho razão de queixa e vou sempre á médica de Família, mas também já apanhei desses que nem levantam os olhos.
    Parece que já tinham a receita feita enquanto esperávamos na rua.

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  4. Olá João!
    Mais uma pérola nos presenteias com este escrito! Parabéns!
    Abraços de Luz! RO

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