terça-feira, 15 de setembro de 2009

DOZE ANOS DE MAGIA


Não há memória de um inverno tão rigoroso como o último. Mas dito assim não se fica a saber das chuvas torrenciais quase diárias, das enxurradas provocadas pelos rios e ribeiros a transbordar de águas, pedras e entulhos de muitos anos de seca e negligência, dos ventos de cortar à faca e rajadas de meter medo e levar tudo pelos


ares. Ruíram pontes e diques, centenas de estradas ficaram intransitáveis. As casas mais frágeis e outras que o não aparentavam são agora escombros e lixo, sucata de ferro e estuque a pedir urgente reparação, socorro possível. Árvores que não foram arrancadas pela raiz por rajadas de vento, estão desfolhadas e com os galhos sobreviventes apontados para o céu em pose de aflição e penúria de folhas e frutos.
Em consequência, muita gente morreu e, os que tiveram mais sorte, ficaram à esmola de quem pode, outros de quem deve e de ambos quase todos.
A João Inocêncio, porém, importa sobretudo a falta de folhas de amoreira que utiliza para alimentar os bichos-da-seda nascidos no início da Primavera.
Para eles colecciona as melhores folhas, as mais tenras e verdes que encontra. Todas as manhãs se entrega à cata das minúsculas larvas que avidamente pastam sobre as folhas, coloca-as à parte noutro tabuleiro com a ração já disposta para as próximas vinte e quatro horas e volta a guardar a criação, de forma religiosa, com um pano branco de popelina por cima, resguardada da humidade e do frio e calor excessivos.
- Põe-lhe as folhas novas em cima, que eles mudam-se!
Aconselha Alberto Carambolas, que muito bem conhece o vício tramado, por também ele, em menino, se ter deixado conquistar por esta azáfama, à falta de mistério e dinheiro para brinquedos mais exuberantes.
- Eu é que sei.
Responde João Inocêncio, procurando enxugar as folhas com uma toalha, não vá a humidade dizimar duma vez o que ele quer preservar durante toda a Primavera.
Às vezes sente-se um privilegiado por assistir à eclosão dos ovos, do tamanho de cabeças de alfinete. Desde logo lhes faz chegar uma folha das mais tenras e, na manhã seguinte, é também aos recém nascidos que dá a maior atenção. E no próximo, e no seguinte até perfazerem as cinco idades necessárias a todo o bicho da seda que se preze. Não tardará a distingui-los sexualmente. Sussurrará apenas para si: os brancos são fêmeas e os listados machos.
Agora o tempo é de exageros. Mal se foi um Inverno feio e rigoroso e já há queixas das altas temperaturas da entrada da Primavera.
- Ainda os bichos desatam a fazer casulos do tamanho de grãos de milho.
Resmunga João Inocêncio.
Não é verdade que dê grande importância ao tamanho dos casulos, afinal o destino é sempre o mesmo: esperar pacientemente a metamorfose, o que, por si só, já é extraordinário, vigiar o dia em que as mal-enjorcadas crisálidas haverão de romper para a vida as intricadas malhas da sua própria teia e, por fim, acautelar-lhes as melhores condições para o acasalamento. Mas é certo também que um grande e belo casulo tem outra vista.
Quando era mais novo, metia os casulos em água a ferver com o fito de interromper ali a natureza e mais tarde os vender e ficar rico. Hoje preocupa-se somente com os calores inusitados e fica preocupado se os bichos vão mirrar até se parecerem com os caules das folhas de amoreira ou, bem pelo contrário, as altas temperaturas os farão medrar do tamanho de dedos, como talos de couve ou até como pequenas cobras, que o obriguem a exibi-los muito antes do casulo, para sua vaidade e espanto de amigos e conhecidos, boquiabertos perante coisa tão rara.
João Inocêncio adquiriu este gosto pelos bichos no dia em que fez oito anos e o tio Januário, por graça, lhe ofereceu um pequeno tabuleiro de madeira com meia dúzia de casais, acrescentando à prenda uma nota de cinco contos e o seguinte pedido:
- Agora multiplica-os. Os bichos-da-seda e a nota. Quando fores um homem hás-de dizer-me qual das tarefes te foi mais ao jeito.
Desde logo os bichos foram o que ainda hoje são: o brinquedo predilecto, o motivo principal da sua atenção, das horas esquecidas no sótão, nem sempre para os alimentar e proteger, mas sobretudo para os admirar quando se alimentam, quando se deslocam de folha para folha num apetite voraz e sem desperdício e como, por fim, engrossam e ficam melancólicos em sinal de que está para breve a construção. Quando todos já se submeteram àquele milagre de transformar o corpo e ganhar alados apêndices, é a ansiedade de adivinhar o dia em que as borboletas de mal empregadas asas, pois não voam, apenas tremem como abanicos, resolvem sair e voltar ao início de mais um ciclo, sempre e sempre repetido.
Muitas vezes se lembrou do pedido do tio. Em boa verdade foi mais um desafio, um jogo, ou talvez nem uma coisa nem outra; uma graça de que com certeza já se não lembra.
Por via das dúvidas, tentou ainda o comércio dos casulos, de forma incipiente, mas sempre que fazia negócio ia-lhe também o coração com os casulos e as crisálidas mortas. Desistiu nos primeiros anos.
Quanto ao dinheiro, como pode ele agora demonstrar a sua rendibilidade, se já nem se recorda de como o aplicou? Esfumou-se. E como não põe ovos como as borboletas, a metamorfose possível é saber trocá-lo. Depois de trocado está gasto; já não há forma de voltar atrás, a não ser que se perca dinheiro. Não há dúvida que os bichos são bem mais interessantes.
- Julgará o Tio Januário que não tenho mais que fazer?
Pensava muitas vezes João Inocêncio. E, depois, para se tranquilizar:
- Deu-me os cinco contos, estão dados e ponto final.
João fará vinte anos em breve e ainda lhe mói a ideia o engenho que irá apresentar ao tio, quando este se lembrar de, por assim dizer, lhe pedir contas.
Na véspera do aniversário não foi trabalhar. Mal lavou a cara e foi ter com o rebanho de criaturas que, por força de inexplicável secagem precoce das folhas, talvez devido ao excesso de calor, rosmeavam como a pedir desesperadamente auxílio.
- Algo estranho se passou aqui!
Gritava aflito.
Os vermes tombavam dos caules ressequidos das folhas, que mais pareciam carqueja, e ficavam inertes e escuros no fundo do tabuleiro. Com a urgência que o caso merecia, João apressou-se a fazer a mudança das folhas. Mas já não resultava: os bichos estavam demasiado debilitados e mal eram colocados nas folhas viçosas, rebolavam e logo depois morriam sem um mínimo sinal do apetite que sempre demonstraram ter.
Morreram todos. Terminaram um ciclo de mudanças e transformações que parecia não ter fim.
João Inocêncio não queria acreditar no que os seus olhos viam através do caleidoscópio formado pelas lágrimas que lhe afluíam compulsivamente.
Queria ele também ficar ali para sempre, rebolar de uma qualquer folha e ficar-se sem palavras nem vontades que o obrigassem ao mais leve movimento.
Pela hora do almoço, desceu silenciosamente as escadas do sótão com um enorme saco de plástico, com ambos os braços apertando-o contra o peito, saiu para a rua e depositou-o suavemente no contentor do lixo, como se de fino cristal se tratasse.
Quando o Tio Januário tomou conhecimento do sucedido, apressou-se a confortá-lo. No dia seguinte, ao jantar de aniversário de João Inocêncio, ofereceu-lhe um bonito relógio de pulso e segredou-lhe serenamente:
- Tudo tem um tempo exacto, mesmo que não tenhamos consciência disso. Poderás estar triste por tudo o que agora aconteceu, mas não vais negar a magia de todos os dias dos últimos doze anos?!

5 comentários:

  1. Não se pode mesmo negar, a magia dos dias. Todos iguais... todos únicos. beijo.

    ResponderEliminar
  2. Obrigada João, muito romântico o teu comentário lá no meu cantinho. Gostei, e dessa musiquinha que aqui tens também gosto imenso, posso levar?!.... ;))

    ... e quanto à tua história, adorei ler e também recordar os meus bichinhos da seda da minha meninice. E é verdade sim, tudo tem um tempo exacto, por muito que isso nos custe às vezes aceitar.

    Beijinho, João.

    ResponderEliminar
  3. Esta história "que eu sei lá" faz-nos pensar.
    No último parágrafo, bem ao jeito do João, uma conclusão a levar o leitor até ao sítio da esperança, do positivismo necessário para enfrentar, de forma saudável, as contrariedades do dia a dia.
    Um conto, lindamente contado!

    Um beijo

    ResponderEliminar
  4. Olá João
    Linda história. Lembrei-me nos meus 60 anos dedicar-me também aos bichos da seda. Os meus sobrinhos netos fazim todos os dias uma romaria
    para junto das caixas onde os bichinhos se acomodavam e comiam regalados.
    Vieram as crisálidas e os casulos coloridos.
    No Inverno guardei-os com cuidado e na Primavera voltei a esperar que eclodissem novas larvas, mas triste o meu desengano.
    Nem uma para amostra.Estavam todos mortos.
    Erro meu certamente. Deixei que se reproduzissem numa caixa de esferovite e certamente não era o local nem o sítio certo.
    Paciência! Realisei um sonho de menino e brinquei com os meus meninos. Durante uns meses a nossa casa teve mais vida sonhos por concluir.
    Este ano não tive férias e quase só nos encontávamos aos fins de semana para os passeios de bicicleta e procurarem os gatinhos pequeninos para os domesticar.
    A vida continua nestas corridas e nestes sonhos que gostamos de recordar com os mais novos.

    ResponderEliminar