domingo, 16 de dezembro de 2012

COMISERAÇÃO


Quero dar-vos conta do que entendo por comiseração.
Aumentou a esperança média de vida, acontece
de vez em quando, mas isso não faz parte do poema.
Todos os dias me levanto cedo
para ver primeiro o que os outros só verão depois
e para mim já não constitui qualquer novidade.
Não é bem este o motivo que me leva a saltar da cama
aos primeiros acordes do galo de serviço:
levanto-me e acontece que não vejo nada de especial,
a não ser os vizinhos que, por qualquer motivo,
têm que madrugar e amanhecem com o rosto amargurado.
Começo então o poema:
é sobre o que entendo por comiseração.
Os cães farejam ainda indecências e lixos nocturnos;
os gatos, esses, dormem finalmente o sono dos justos.
Eu percorro a cidade sem audição ou cheiro: vejo apenas.
Olho para tudo o que sempre esteve, inexorável,
no mesmo sítio. Trauteio os restos de uma melodia da véspera,
como um disco que se partiu e repete
aquele momento imprevisto e absurdo e coço
a virilha direita, não porque tenha comichão,
mas porque é hábito coçá-la como todos os homens fazem.
No céu, os pardais ou outros pássaros cinzentos
que os substituem para me confundir,
parecem-me contrariados e eu tenho pena deles.