terça-feira, 13 de março de 2012

O HOMEM QUE ESCREVIA VERSOS BRANCOS



Para os Meninos, Meninas e Professoras da Escola Básica S. Nuno de Sta. Maria de Cernache do Bonjardim, a quem dediquei, nos dias 6 e 7 do corrente, no âmbito do Programa Oficina da Escrita, todas as metáforas que na altura consegui…

Era um homem de saberes distintos. Moldava versos mentalmente durante algum tempo e depois escrevia-os como se os soubesse de cor. Fazia-os de memórias antigas. Todas as palavras desenhadas no papel tinham uma luz ardente. Às vezes sorria-lhes. Por mais singelas, rebuscadas ou buriladas, o homem parecia conhecê-las a todas como os seus próprios dedos, mesmo no emaranhado dos versos que guardava secretamente no cérebro até achar a oportunidade fantástica de lhes poder dar luz.
As palavras. Oh, as palavras, isso é dizer muito pouco sobre o que o homem derramava no papel… Eram astros, cometas incandescentes que a sua mão mais ágil ia traduzindo à medida que a memória ditava. Algumas riscava-as como se quisesse imitar a cauda dum asteroide, a outras acrescentava-lhes letras com luz ainda mais fogosas e a outras ainda dava-lhes uma espécie de vida humana: molhava entre os lábios cerrados e a língua a ponta aguçada do lápis e reescrevia-as ensopadas de saliva, como se suassem; como se chorassem; como se as benzesse daquela forma pagã e as soltasse para a vida efémera que é o momento da leitura.
Diariamente – por ser um período de tempo acessível à nossa compreensão – arriscava um poema; um fio de versos capazes de entontecer o mais empedernido dos seres. E fazia-o com a serenidade de sempre: o caudal das palavras percorria toda a folha de papel ao mesmo tempo que as lágrimas e todas as outras águas levavam à frente o jorro das suas inquietudes, até à conclusão apoteótica do poema.
As folhas de papel eram como que assoreadas de todo o pó e de todos os restos de escritos antecedentes e candidamente expostas à sua inspiração. Assim procedia para que a brancura dos versos não fosse poluída de matéria inconveniente.
Ao fim de cada jornada, a folha de papel continuava imaculada, com um novo poema branco e irrepetível derramado, mas em que apenas ele era capaz de ler todos aqueles versos lácteos e sublimes, que jamais alguém havia escrito. Ele e todas as crianças de olhos cristalinos como as suas folhas de papel.