sexta-feira, 8 de outubro de 2010

AS TRÊS SEARAS

SEARA DE VENTO

Todos os ventos são bons à sua maneira. E todas as chuvas, e todos os sóis. O vento é também ar que se respira. A seara é a sua cama, o seu colchão de erva e palha estendido até onde se chama linha do horizonte, por mais não nos ser dado a ver.
A brisa da noite é fresca como a água da fonte. Entranha-se nos ossos dos homens e no coração das espigas. Então a seara balança, ondula, qual bandeira de pão, tanto quanto a lua deixa perceber. De madrugada juntam-se-lhe as papoilas, tremendas. Na verdade sempre ali estiveram, mas só agora as suas pétalas deslumbram.
Se a aragem se aquieta a geometria é perfeita: sombras, perfis irrepreensíveis, múltiplos jogos de espelhos, reflectem toda a luz dum imenso sol.
O suão escalda como nenhum outro vento. Tem a bondade duma navalha afiada; corta; tudo submete à sua vontade; queima.
Quando vem, pesado e lento, sufoca. Não é a mesma a cor das papoilas que sobram, onde ainda há pouco tremiam, lambendo como línguas vermelhas o pão semeado. SEARA VERMELHA

O rancho canta enquanto adentra e leva o pão de vencida, a troco de suor. Muito suor e pouca jorna. A quarta não tem descanso. Muito menos quem a transporta.
- Água para além, para molhar a cantiga e o alento!
A seara é um mar que se espraia à força dos braços e do balanço dos corpos curvados de homens e mulheres, que levam a proa à derrota das espigas até à última réstia de sol.
Foices em punho, segam a eito. Hoje, amanhã, no dia seguinte e assim por diante. Tornam os caminhos do pão e pelo pão.
Tudo se faz lutando. Quase tudo é empecilho e estorvo até o pão chegar à mesa de quem, com as próprias mãos, o produziu. Por isso lutam os homens. A seara é um quinhão colectivo de quem a trabalha.
Hão-de vir as máquinas e tractores passados anos e mondas. Que venham. Não será por isso que a memória da seara deixará de ser da cor do sangue. SEARA NOVA

Esta seara não existe (ainda) e é, ao mesmo tempo, a maior: tem o tamanho da esperança. E a esperança é como um silo: se não enche não vale a pena.
A seara nova corre nas águas do Guadiana. Canta quando roça nas pequenas ilhas que espreitam curiosas ao longo da corrente ou repousa nas enseadas para retomar o fôlego e iniciar nova jornada.
Ao fim de cada dia torna a ouvir-se o diálogo:
- Para quando, por quanto tempo mais este caminho?!
- Vou com as águas.
O mesmo é dizer que o seu corpo é a planície.
- Como pode um corpo imenso com tanta deriva?
- Sou imune à dor. Sempre me doeu a dor e agora já não me faz diferença: carrego-a como parte de mim.
- E o açude, a barragem, não te diz nada?
- Quero ouvir o teu dizer. Eu apenas sonho.

3 comentários:

  1. Olá João
    Belo texto. Leio e releio e não consigo esconder-me nesta tua seara.
    Não sei se é o vento que me afasta dessas ondas de espigas com o aroma do pão ainda verde.
    Talvez sejam os cardos que as mão amaciam.
    Os olhos apenas colhem o sabor do sangue que escorre desse cântaro de água cristalina.
    No coração ficam as cantigas de esperança numa seara nova.
    Talvez as máquinas tenham ido para outro país...
    Quem sabe...?
    Com elas levaram os últimos gritos de suor vermelho de tanta gente que alem morou.....
    Um abraço e descansa. Dorme uma sesta. Faz bem.

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  2. Estou lhe seguindo, seu blog é ótimo e ainda tem uma linda melodia que se entrelassa em suas palavras e nos fazem viajar...
    Me segue também? Assim materemos contato!
    Abração.

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  3. "Sou imune à dor. Sempre me doeu a dor e agora já não me faz diferença: carrego-a como parte de mim.
    - E o açude, a barragem, não te diz nada?
    - Quero ouvir o teu dizer. Eu apenas sonho."
    Lindo...Parabéns João, escreves muito e bem...
    Eu já te disse uma vez que teus escritos nos trituram!
    Um bom domingo, abraço, Rosana

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