terça-feira, 24 de abril de 2018

VICISSITUDES DE UM HETERÓNIMO

    Joan Miró, gravura

Haveriam de passar anos, até que um dia,
hoje mesmo, desisti de procurar Bernardo Soares.
Explicaram-me há pouco as razões deste mistério:
ambos nascemos do nada, do cérebro povoado
de alguém que, em desassossego, nos deu carta de alforria
e nos abandonou. Nada mais que isso.
Não se trata de uma reclamação e muito menos
de um lamento de órfão em letra de forma.
Afinal tem muitas vantagens esta relação fria com o tempo:
as plantas crescem e os frutos vão amadurecendo
à vez, como podem e como tem de acontecer,
sem se importarem que todos os ontens tenham existido.
O mais relevante é que a natureza não dê conta
que andamos a abrir regos onde não passa  água nenhuma,
seque e hoje nunca mais chegue a ser dia.