segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ficção sobre ficção e um poema apócrifo

Nunca vo-lo disse, Joaquim das Vacas era poeta.
Naqueles lugares de terra e sol imensos, há quem toque concertina; quem cante entre dois copos; quem se entretenha falando do que sabe e não sabe da vida alheia; mas o Joaquim das Vacas fazia versos de improviso. Era poeta.
Construía com perícia as quatro décimas, cujo último verso repetia, por ordem, a quadra do mote, e recitava-os de memória vezes sem conta, a propósito de tudo e de nada. Prodigiosa memória, que guardava o acervo poético de uma longa vida!
Sempre que no grupo aparecia mais um, era quase certo que Mestre Joaquim, como normalmente era tratado, iria soltar a musa, improvisar ou, na maioria das vezes, desfiar o rol dos versos antigos, que alguns contestavam por já os terem ouvido vezes sem conto. Era no entanto uma contestação, se o termo aqui tem cabimento, efémera.
Os temas eram os de uma vida de canseiras, do trabalho de sol a sol, dos louvores do pão e de outras sementes, da exaltação dos melhores filhos da terra, do louvor à Reforma Agrária. Este era o mundo de Joaquim das Vacas e por isso o cantava nos seus versos.
Eis o poema que mais vezes lhe ouvi:



Sem terra fui lavrador,
dono das estrelas do céu.
No chão junquei meu suor
mas de nada me valeu.

Do frascal até à seara,
como as palmas das mãos,
conheci ruins e sãos,
do vulgar à coisa rara
e até a ferida que não sara.
Na terra esqueci a dor,
suportei frio e calor,
acordei nela manhã cedo,
mas revelo agora o segredo:
sem terra fui lavrador.

Tive braços para ceifar,
para espalhar as sementes
e colher frutos pendentes.
Com pouco mais para dar
que o corpo para trabalhar,
todo o universo foi meu,
enquanto pude, enquanto deu.
Só ao deitar fui morgado,
senhor de mim já cansado,
dono das estrelas do céu.

Não conheceu abandono
porque foi maior o amor,
quantas vezes feito de dor
à terra de que fui dono,
e digo-o em meu abono:
soube seus desejos de cor,
confortei-a, dei-lhe amor,
e sem pedir nada para mim,
reguei-a como a um jardim:
no chão junquei meu suor.


A idade passou-me à frente
dos anos que não dei conta.
Mas hoje já tanto monta,
pois já só tenho o presente
e pouco daqui para a frente.
Do quanto pude ser eu
ou do que esta vida me deu,
o que me toca mais fundo
foi ter toda a terra do mundo
mas de nada me valeu.

3 comentários:

  1. Olá João
    Está aqui tanto calor que parece que vou morrer assado.
    Li o teu trabalho ainda de manhã mas tive de sair e já não pode deixar-te um aplauso por tão bela obra.
    Lindo, belo e formoso poema.
    Tantos que poderiam cantar esta letra mas não souberam fazer poesia.
    O Joaquim da vacas era uma figura cheia de capacidade, um agricultor das letras que transportam magia e mágoa.

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  2. Muito Bom, João, este teu poema apócrifo ficcionando Joaquim das Vacas, deste Romance "Mar de Pão" que até poderá muito bem guardar este segredo,acrescentando ao amanho da terra, o quente cansaço de dias de sol a sol e algumas mágoas ou desencantos, o momento de ter voz para cantar e memórias para contar
    Embora diga que de nada lhe valeu...
    Acho que vale, sempre!
    (Curioso imaginá-lo assim - Poeta e Cantador)

    Belo Post, gostei muito
    Vais fazer-me reler o livro e isso é bom

    Beijinho
    MJ

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  3. gostei. e ainda mais do que deixaste lá no putasresolutas. demais.

    um beijo.

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