sexta-feira, 31 de julho de 2009

PÉROLAS A POUCOS

Olhares - Foto de Raphael o Pensativo

Não nunca foste marinheiro de mares por desvendar
como se o oceano acreditasse nos teus impulsos
e no teu sangue vigoroso mas apagado já das réstias
de calçada romana dos farrapos de desespero e tinta
incapaz de acender as luzes de cada sílaba inexpressiva
das cores estranhas do desencontro de dois pássaros voando
da suposta pureza dos gestos inconscientes como azedas e bugalhas
que persistem na memória adulta
e enfim dissolvido sobre a areia
sem deixar cheiro ou rasto
mas o espaço onde nunca estiveste
e se ouve ainda nos búzios o que de mais inexistente
existe além da música de tanto mar à solta

se as marés dos teus recados alguma vez mentiram
foi porque ao leme apenas deste as mãos as tuas mãos
feias e vagas com a imaginação decepada

não nunca foste emigrante de meio mundo aventureiro
na outra metade sempre desejosa do teu engenho
reflectido no mármore e nos espelhos onde sentes melhor
o efeito da multiplicação original

quantos lençóis de vento te adormecem na pele da cara
a pele de todos os sentidos?
quantos cálices de licor te embebedam a memória
de mil religiões?
quanto leite as noites choram e te lavam
do azul climatizado dos dias em que pressentes a felicidade?

por isso expeles do peito tudo quanto pode
perigosamente tornar-se corpo e magoar

marçano e lixo com elogios falsos
às bagas de suor exaltado e latino (último descendente líquido do escudo)
isso foste e muito mais trampa que talvez nem sonhes
não nunca foste guerreiro voluntário moço de armas
e crente nas virgens (que nunca te faltaram…) a quem rogaste
mil preces para que o inimigo fosse apenas
uma provação de deus duvidoso um dia da tua inabalável fé cristã

- como era difícil convencer os pássaros da afronta
mas se voavam eram os teus olhos que sobre as suas asas
descuidavam de ambos a mesma esperança inquieta –

vieram dias em que a alegria te renovou o sangue
vieram dias em que o sangue te iludiu no pregão dum cauteleiro
e apesar de tudo o coração bate é nele que te pressinto
a carne deliquescente e voluntariamente deixo a música
inundar-me as têmporas – apesar de tudo o coração bate!

panóplia afinal para medalhas e guiões
de mérito e bravura é que tu foste
porque das batalhas apenas te ficaram cinza e cicatrizes

olha as caravelas que no teu sangue são gaivotas
sem sol nem porto de abrigo
olha as caravelas que navegam na memória do teu sangue
subitamente líquido
camponês de séculos de secas!

tu nunca foste nada além de poeta morto
à míngua de poesia.

7 comentários:

  1. "poeta morto à míngua de poesia."
    Não aqui, que aqui a poesia transborda límpida e fresca como água na fonte.
    Este poema parece-me um pouco diferente dos que tenho lido, mas nem por isso menos interesante.

    Um beijo

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  2. Sim!...
    Tu, aqui, só és poema!...

    Um abraço
    Obrigada por tantas palavras de fazer bem.

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  3. João, Céus, que grito de raiva!
    Espectacularmente bem escrito (outra coisa não seria de esperar) e bem descrito; como se de um estado de alma se tratasse.
    Adorei ler.
    Beijo.

    P.S. - e pedindo perdão pelas minhas prolongadas ausências, a promessa de hoje me redimir delas... :))))))))

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  4. Olá caro João.
    Gosto muito destes últimos que por aqui tens colocado.
    O que aconteceu à tua crónica deste mês no Ensino Magazine? Senti falta dela...
    Abraço,
    CS

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  5. Belas imagens, João. Bom fim de semana! Abçs.

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  6. Para manifestar o meu apreço pela sua poesia. Vou passar a seguir este blog.

    Cumprimentos.

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  7. Teu escrito hoje traz palavras fortes João...
    Mas como sempre, belo e expressivo texto, parabéns! Bom final de domingo! Beijos Luz, RO

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