quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

DETALHE

     Eleonore Koch


Às vezes um salto brusco, um sobressalto
daqueles que guardamos em gavetas abarrotadas
com papeis, cumpre a sua missão de catarse:
-Eu sabia que um dia te encontrava – suspiramos.

Um papel escrito. Um pedaço de papel sem valor
aparente, a que só nós damos toda a importância,
e mais ninguém arriscaria uma molécula de interesse.
É nesse instante que nos tornamos únicos.

Levamos estes sinais sem dar por eles.
São subtis, não estão ao alcance dos outros
nem de nós, salvo naquele momento preciso,
de sobressalto, em que connosco nos encontramos

algures, num rascunho perdido ao fundo da gaveta,
onde sempre estivemos a sós e em silêncio,
sem dar conta que algo ainda havia para acrescentar
ao que somos, mas que mais ninguém irá dar por isso. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

OS RETRATOS


A memória tem um lugar próprio para os retratos:
os de família, os de viagens e os nossos, em criança.
A verdade é que os retoca, troca de lugar
e, mesmo os a preto e branco, dá-lhes brilho e cor.

Tenho assim um álbum de recordações,
nem todas reveladas. Muitas, em película,
têm as cores trocadas e sou eu agora que as invento,
ao desafio com a memória, dando cor ao meu passado.

Mas o passado foi muito mais do que retratos,
foram anos de memória ausente, e tão velozes passaram,
que hoje se parecem com as desbotadas cartolinas
à la minute, em pose e vestes que já não reconheço.

Deixemos então os retratos nos lugares onde estão,
mesmo sabendo que são únicos e que nunca poderemos
pedir cópias daqueles em que ficamos bem,
só para repetir as qualidades que duvidamos ter.

sábado, 26 de janeiro de 2019

VERSOS PERDIDOS


Tenho pena dos versos que encontro, perdidos
na memória dos arrabaldes despovoados
e do cheiro a mofo e a caliça, que persiste,
que resiste ao tempo e à voragem das casas.

É estranho que não se tenham dissolvido
na chuva dos invernos passados; rasgado,
como as folhas caducas das árvores no Outono;
desbotado ao sol, como a roupa estendida nas janelas.

Comovo-me ao vê-los dispersos e sem sentido,
mas quase todos me acenam e dão a salvação…
Já não os sei de cor nem reconheço pelas rimas.
Afinal, não estão perdidos: eu é que tenho envelhecido.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

PALAFITA, PELA VIDA


É sobre paus, sobre pedras que fosse
a cama onde me deito e sonho e durmo
e volto a sonhar acordado. Onde não há meio-dia,
senão o dia inteiro e algum peixe.

O desconforto das águas é a minha vida!
Chapinho com os pés, que balançam na estacada
e murmuro uma canção aprendida em criança,
o céu tem o encanto mas não o pão de cada dia.

Range a palafita, como os meus ossos,
como tudo à minha volta, excepto o sonho,
que balança sobre a ondulação constante,
vai e vem, vai e vem, e me conta os seus segredos.

Aqui morre tudo o que é brando e o que afaga,
não se extrema a vida porque decorre igual todos os dias,
nem se condensa em palavras prontas a servir:
aqui baloiçam as ondas enquanto a vida dorme.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

LÁSTIMA


Sou o piloto das minhas salgadas lágrimas
com experiência em muitas horas de voo…
Na verdade, sou um pacífico camicase,
que com elas me despenho e mortifico.

Se houvesse um deus visível, a quem
pudesse, cara a cara, contar como me violenta
este suicídio líquido, haveria de o comover
e por certo convencer da sua imperfeição.

Ressentido, logo me falaria das unções,
que os deuses guardam como mezinhas,
para me secar o pranto. Mas é escusado:
nenhum deus dá a cara por uma gota de água.

Tudo junto – deuses e lágrimas – é-me igual:
não os convenço a eles da imperfeição original,
nem eles a mim de milagrosa cura,
se for cura secar de vez, sem uma lágrima de sede.



domingo, 20 de janeiro de 2019

ALDRABA


Eis a chave que tranca,
mestra por tal valor,
o nosso dinheiro na banca
para não lhe vermos a cor.

Ficamos tão ofuscados
com o vislumbre da massa:
luxo, p'ra mal dos pecados,
lixo, p'ro rating da praça.

Não passamos da cepa torta,
olha a grande novidade!
Então, ponham trancas à porta
e deitem fora a chave.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

POST-IT


Valha-te deus, a cabeça,
já foi o que agora não é,
não deixes que aconteça
somente para por o boné.

Deixo-te aqui um recado,
não esqueças o que lá anoto,
para que o aqui lembrado
não caia em saco roto.

Põe a memória à prova,
um de dois recursos te resta:
ou compras cabeça nova
ou colas um post it na testa.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O LUGAR DA POESIA


Já o disse e volto a dizer:
o poema é uma caixa vazia,
se dentro dela não houver
um sopro de poesia.

Mas há poesia à solta
e tão liberta se acha,
que mesmo tentando não volta
a meter-se dentro da caixa.

Voa, evapora; e de cima
ri, brada, canta, chora
e em versos livres ou rima,
acena e vai-se embora. 


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

PRECLARA DÚVIDA


Um prolapso do sol
um pedaço de sal
uma côdea de pão mole
um percalço ocidental

um passo de caracol
menos mal menos mal
um peixe no anzol
quanto é que isto vale?

sábado, 12 de janeiro de 2019

BILHETE DE IDENTIDADE


O tempo passa e vou com o vento…
de manhã esfrego as mãos como quem reza:
é um modo de permanecer atento
e ajuda a ter, pelo menos, meia certeza.

Quando a tarde cai e o dia escurece
é hora de avaliar o bom e o seu contrário.
São contradições de quem permanece
e vai retirando folhas ao calendário.

Haveria de ter sido um pássaro, ocre,
de olhos bem abertos, como se encantado;
aquele que por ser desenho não sofre,
em vez de sofrer de tanto ter voado.

Querem encontrar-me, saber quem sou?
O silêncio basta, mapa não é preciso:
um pássaro que sem querer voou,
algures entre uma lágrima e um sorriso.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

VERDADE POÉTICA


O poema foi uma semente e fez-se árvore;
deu frutos, sombra e cachos de versos…
Saboreio-os agora, sumarentos.
É impossível mentir sobre tudo isto.
Então, uma folha solta-se de um ramo
e em queda, oscilante, vai com o vento
poisar onde os últimos versos ainda dormem. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

NOTAS SOLTAS



Perverso é procurar
o mar num verso;
o inverso
é se o verso naufragar.

(Nota solta,
verso ao mar,
não volta
não volta a navegar.)

Mas se de tanto porfiar
der à costa, controverso,
está no verso e está no mar;
é nota de face e verso.

domingo, 6 de janeiro de 2019

DE OUVIR DIZER


Como posso eu comprar vinho, Senhor,
ao preço que estão as uvas,
mais o pé-de-obra de esmagá-las;
como posso eu aventurar-me assim
como vós, que sois capaz de o fazer
a partir da água, a partir do nada,
que é o valor dado à água quando abunda?
Guardai, que vos pedirei ajuda.

Mas é de água que preciso agora, Senhor,
não desse etílico líquido, que me mata
e não mata sedes antigas.
Guardarei o bem-aventurado vinho
para as sopas de cavalo cansado, tão nutritivas,
e mais tarde falaremos do pão necessário,
assunto em que também sois mestre
muito competente, segundo ouvi dizer.

É de água, pois, o meu pedido, Senhor,
não daquela deslavada que me entra
pelas frinchas do telhado e eu chamo chuva
há uma data de anos.
Água doce, benzida ou não, tanto faz,
mas que eu não tenha de a chorar,
não precise de fingir que tudo está bem assim
e morra de sede como as nuvens.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

BOMBO DA FESTA


Carregamos o fardo por bonomia,
outras vezes empenho puro,
raio de couro, que força é esta?

Mas não chega o bombo, não chega
o estrondear rude e magoado
se não acompanhar a orquestra.

Subimos o monte uma, outra vez,
vezes sem conta pela vida fora
e por fim o que sobra, o que nos resta?

A toque de caixa e sempre sorrindo:
- Cá vamos andando, cá vamos andando!
Não cabe outra sina ao bombo da festa.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

RIDÍCULOS


Houve um tempo em que todos
usávamos brilhantina e
ninguém se achava ridículo.

Afinal, o mundo não acabou,
nem por essa nem por outra razão,
mais ou menos ridícula.

Fumávamos cigarros mata-ratos
e o seu nome não nos dava nojo
nem sequer nos parecia ridículo.

As valentes palmadas que levávamos
pelas aventuras mais ridículas,
nunca saberemos o efeito que tiveram.

Lembramos hoje, tão bem, o ridículo
dos primeiros beijos não familiares
e sentimos amargos de boca.

O ridículo nunca se toma por presente
e nós, que um dia o fomos sem saber,
somos ridículos agora que o sabemos.