sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

DITADOR



Era um gnomo,

um pingente,

da laranja um gomo,

dez réis de gente.

 

Fez-se senhor

de colarinho e anéis,

um ditador

dos mais cruéis.

 

Digamos que sim,

que é verdade pura

-ai de nós, ai de mim!

Vem aí ditadura.

 

Não foi ´era uma vez´

a fruta malsã

e às duas por três,

outra vez amanhã.

 

Dez réis de gente

que vai e que vem,

hoje pingente

amanhã ninguém.

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

OS BEIJOS


Não sei que fazer aos beijos

que trago zelados no bolso:

alguns para dar em festejos

outros quero dá-los e não posso.

 

O beijo tem deve e haver;

ao dá-lo tem reciprocidade

e eu não os dou sem antes ver

o saldo na contabilidade.

 

De repente ficar sem beijos

dá-me aflição, nem pensar…

já não são beijos; são desejos

de querer e não ter para beijar.

 


 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

ALGUMA BONOMIA


Além, daquela velha árvore

vou trazer um bom chamiço

para assar um chouriço

e agora chama-lhe lá parvo.

 

Atiçado o lume e a candeia acesa,

não tarda, às duas por três,

por mor de aquecer os pés,

não tenho quem mos aqueça.

 

Assim, o corpo fica temperado,

com um ou dois copos de vinho,

que o chouriço não morre sozinho

nem eu fico desidratado…


 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

NA MORTE DO MENINO JESUS


Na noite de Natal vi o menino Jesus
ser assassinado na Palestina.
Não tenho dúvidas que era ele,
entre milhares de outros baleados,
sem nome e em nome de outra profecia.
O menino Jesus jazia nos braços de sua mãe,
já sem lágrimas para o chorar,
e ali estava ele. Branco e defunto.
Não vou chorar o menino Jesus
morto ao colo de sua mãe.
As minhas lágrimas nada iriam acrescentar
à dor daquela mãe, de todas as mães.
O menino Jesus foi assassinado na Palestina
na noite de Natal e são conhecidos os culpados
ou querem que acrescente os criminosos
ao presépio para memória futura?!


 

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

A DE VERSO



Esta manhã tive um estranho encontro comigo,

como se não nos víssemos há anos.

Ou pior ainda, como se não nos conhecêssemos.

Era muito mais novo e tinha um sorriso tímido,

talvez duvidoso, a adivinhar o futuro.

Parti do princípio que a minha vantagem sobre ele

bastaria, excepto as pernas, que fraquejam agora,

mas isso não vinha a propósito.

Disse-lhe o que é costume nestes encontros:

Tens um aspecto magnífico, que fazes por aqui

e surpreendeu-me a sua resposta:

tenho estado onde me deixaste da última vez;

tens passado por mim ao longo dos anos

sem te aperceberes e agora, que as pálpebras

te vão pesando, queres abrir os olhos para mim

e demais memórias sem regresso nem remédio.

E a minha teimosia em viver vai caminhando

Inexoravelmente, até onde o Sol finge caminhar também

entre o céu raiado e o espelho do mar.

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

ESTÁ DITO



Restam-me pétalas, que tudo é graça,

e palavras nem uma só que valha a pena;

muitas delas caíram em desgraça

outras, pelo uso, estão de quarentena.

 

Não, não tenho mais palavras para dar;

tenho flores, que atiro das janelas,

com vantagem, para quem as apanhar:

não as leva o vento e podem ficar com elas.

 

domingo, 10 de dezembro de 2023

AINDA O OUTONO


O céu de incerto cinzento é o que me resta

das anosas videiras do quintal.

O outono levou-lhes as folhas e gavinhas mortas

e eu tenho saudades da verdade das uvas,

não desta alheia casta de refulgentes estrelas,

sempre prontas a azedar o vinho novo.


 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

A NUVEM


Uma nuvem veio hoje visitar-me.

De pequeno porte, tímida e já chovida.

Vinha por isso enxuta e acomodou-se a um canto

como um pedaço de algodão doce

perdido pela criançada.

Fugia das nuvens negras, da guerra,

com medo de ser confundida e trespassada

por uma qualquer bala assassina,

dessas que enchem o mundo de sangue

e de lágrimas e de valas comuns.

Estava claro que esta nuvem era uma refugiada

do céu, onde também se tornou perigoso viver.

Deixou cair uma lágrima, coisa sem importância,

e lamentou a sua condição de nuvem seca,

a quem o mundo extorquiu toda a água da sua vida.


 

domingo, 3 de dezembro de 2023

CARREGADOR DE INFORTÚNIOS

Fardos, muitos sacos cheios

de nadas, valendo duas por uma,

não contando os sacos meios,

metades de coisa nenhuma.

 

Redimido, como sempre quis,

em dias de domingo e nas festas

doava gardénias à sua amada feliz,

na verdade, apenas estevas e giestas.

 

Quando havia mais carrego sonhava:

um dia compro-lhe gardénias de verdade,

pese o infortúnio – pois se a amava –

que as flores sejam a nossa liberdade.


 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

SOLSTÍCIO


 

O Sol e as nuvens brancas

choram, à vez, no rio da minha terra,

o anunciado inverno.

Eu soletro mágoa e digo lágrima;

soletro ave e digo pena…

Água de algum lugar chove em mim,

deixando-me sem palavras enxutas.

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

VERSOS PERDIDOS


Com o tempo sucumbem os versos quebradiços,

mesmo os que antes giravam em carrossel,

são agora memórias, talvez reais, submissos,

e tresandam a tinta e a folhas de papel.

 

Mudam os tempos dos verbos para os passados,

que os há também actuais, sobreviventes

à custa do garimpo e da salvação dos mal-amados

versos que um dia foram chatos, impertinentes.

 

Não há meio de conseguir uma conciliação

e os versos, felizes com a escolha, é o que penso,

assomam às folhas perdidas, de aluvião,

 

cuidando confundir-me, quais carvões de incenso,

mais não podem que uma tremenda confusão,

há tanto tempo perdidos, nem eu a eles pertenço. 


 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

AS TRÊS NOZES


São elas, mais do que as nozes, as vozes:

a noz da guerra, não parte, rebenta, ai de nós.

A noz da fome, dura de roer a quem a come;

a quem a tome e não consome tem outro nome.

Sobra uma terceira noz, noz como nós, basta vê-la

e surge, de viva voz, o desejo. Apetece comê-la.

 


 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

PALESTINA II


A um canto da revolta, o canto

e a lágrima em forma de coração,

seca. Um mar de desencanto.

A alma cheia e um pranto de razão.

 

E a razão é um pássaro altivo,

à afronta não cessa o voo nem cala,

antes morto que cativo

e a sua lágrima é em forma de bala.

 


 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

HISTÓRIA(S)



Montado no meu cavalo de prata

empunhei sozinho a espada

de Afonso Henriques e logo ali

trespassei os sete ladrões que a roubavam.

 

Sete anjos de grandes bigodes

acenaram-me, lhanos e garbosos,

de cada uma das sete colinas de Lisboa,

que mereceram o meu apreço e saudação.

 

O primário manual de história tinha o condão

de me criar épicas ilusões, nunca aproveitadas:

continuei comendo do requentado caldo,

mentindo a mim mesmo esta verdade.

 


 

domingo, 30 de julho de 2023

A CASA


A casa é um feitiço

ainda não descoberto,

está onde está, por isso,

é um longe sempre perto.

 

É um lugar da lembrança

ou o pouco guardado dela,

um atalho de esperança,

uma porta e uma janela.

 

É de mil coisas lugar,

restos de ter e haver,

sítio a que chamamos lar,

sobras, algumas por varrer.

 

Mas um sítio imaculado

em pouco tempo, e o futuro

é o provável culpado

dos caminhos em que me aventuro.