sexta-feira, 23 de maio de 2025

AVEC LE TEMPS


 

Vivo de maleitas e penas,

também de alegrias fugazes;

lutas, gritos e novenas

 e assim faço comigo as pazes.

 

São tantas e tais as penas,

que nem me atrevo a contá-las,

das maiores às mais pequenas,

todas são pedras e balas.

 

Apesar disso tenho flores

vermelhas de anos transactos,

hoje lembranças e rumores,

mas a maioria são cactos.

terça-feira, 6 de maio de 2025

EM UM DIA DE PESCA


O meu tempo – e ele é cada vez menos meu –

entrou em velocidade de cruzeiro.

Não para já nas estações; acelera como um louco,

como um comboio sem travões.

 

A poesia vai saindo por uma chaminé

ao sabor do vento, em sentido contrário.

O silêncio, feito de ponteiros de relógio,

não deixa vestígios, é o álibi perfeito.

 

Demasiadas memórias… são sinais – o tempo voa –

nem tanto como pássaros, esses vão e vêm,

mas como o sopro de uma aragem fria

que, por ironia, vai queimando as veias.

 

Agora, o anzol traz-me um peixe,

que não é culpado das minha demoras,

e eu o que faço ao desgraçado, sacudindo a morte?

- Vai! Volta às águas do resto da tua vida!


 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

DAS PALAVRAS ABANDONADAS


Das palavras abandonadas, a palavra paz

encontrei-a com o corpo cheio de mazelas,

segurando uma pomba ferida e suja,

com vestígios de ter sido branca, quando nova.

 

Por outras palavras, já não tinha uso ou préstimo.

Além disso, todos olhavam para ela

com desconfiança, com receio de lhe tocar,

não fosse uma armadilha que detonasse nas mãos.

 

Afastada dos dicionários por falta de significado,

a palavras paz vive sem abrigo, coberta de estrelas

e luzes de néon que a evocam sem convicção,

numa guerra de palavras sem qualquer sentido.  


 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

ANDAR, POR ENQUANTO


O teu andar, por enquanto,

devagar, inseguro, hesitante,

o teu andar doravante

será certo e equidistante.

 

Por enquanto, anda que não anda

vai que não vai, caminha,

porque não é o teu andar que manda;

é o outro lugar que o encaminha.

 

Por enquanto, é este o teu lugar,

o sítio onde vais ou queres ir,

depois veremos se queres ou não parar,

se preferes algum lugar ou desistir.

 


 

domingo, 22 de setembro de 2024

VAMOS ANDANDO



Anteontem tive sinais, volta e meia,

de sufocos, coisas várias, falta de ar,

que afinal se revelaram branda diarreia,

e diagnóstico simples de mau mastigar.

 

Outras foram fístulas já antigas

de rabo alçado às ordens de fino bisturi.

Tudo feito com cuidados de mãos amigas

nada de maus presságios e não morri.

 

Virá um dia aquela que não se espera,

súbita, de subtil e inesperado recorte,

da vida não é o que me deu, mas o que me dera

e por uma pequena fresta encontrarei a morte. 


 

sábado, 14 de setembro de 2024

VÉSPERAS DE MÚSICA


Um ornato cantante,

quase um altar natural,

um parapeito, uma estante,

o palco dos lilases no quintal.

 

Debruçam-se amolecidas

as pétalas de veludo

como se tivessem mil vidas

e sem mais terem, têm tudo.

 

Ensaiam o pranto, digo, o canto

na orla da casa antiga

e para meu prazer e espanto

o seu choro é uma cantiga.


 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

"VELHOS SÃO OS TRAPOS"



Despe e veste dia a dia

o trapo que esconde os anos

trepa, trapa a fantasia

e do tempo desenganos.

 

Sabem de nós os trapos

o que não saberemos deles,

são agasalhos, são fatos,

fazem-nos trapos com eles.

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

FANTASIA



Um dia destes,

subo à árvore que em mim cresce

e da copa olharei a terra que me cerca.

Saberei, desse burladero,

as ervas que me cingem, o chão que me sustem.

E, observando tudo isso,

tirarei sérias conclusões:

as minhas sementes serão encaminhadas

de modo a ter o melhor chão

e poder morrer tranquilo,

caso não haja impedimentos de última hora.

 

domingo, 18 de agosto de 2024

BEIJOS GUARDADOS



Trazia no bolso, embrulhado

um beijo para te oferecer,

guardei-o tão bem guardado

que acabei por me esquecer.

 

Outro dia será, com juros,

quem sabe, juras para o depois,

se os beijos estiverem maduros

e forem bastantes para dois.

 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

O MEU TEMPO


Queria dar-vos um conselho

sobre o tempo que eu aprovo:

o tempo não passa por velho,

o que passa é tempo novo.

 

Se não, o tempo passado

já chegava bem maduro,

e por isso chegaria atrasado

para o que espero do futuro.

 

Quero o passado onde está

e o futuro no que há de vir

tudo em seu lugar, não vá

de tanto esperar desistir.


 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

EZEQUIEL, POR EXEMPLO



O meu nome é Ezequiel,

esse foi o nome que me deram.

Além de mim e da curiosidade

de alguns cidadãos

ninguém mais se importa com isso.

 

Por assim dizer, sou um cidadão anónimo,

com nome próprio,

mas que ninguém tem interesse em saber,

salvo raros casos

em que me pedem o cartão de cidadão

para o olharem com desdém

e, por fim, conferirem com a minha cara,

voltando à sua tarefa cabisbaixa.

 

Muitos sorriem ao ouvir o meu nome:

Geralmente os Josés, os Joões e as Marias.

Não sei o que pensam.

Imagino que me atribuem alguma deficiência

enquanto embalam com ternura

os nomes que lhes foram dados,

tal como a mim, que nada pedi ao nascer,

nem voltarei a nascer para pedir seja o que for.

 

 

NATUREZA


“O que sucede à árvore sucede ao homem. Quanto mais se quer erguer para o alto e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo.”

(Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche)

 

 

Dizem das árvores

a raiz profunda

- natureza-morta, óleo sobre tela

Dizem das árvores

a sombra fresca

- natureza morna, o sono, a sesta

Dizem ainda das árvores

os frutos maduros

- essa é a natureza humana.


 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A VER VAMOS


Não sinto o sentir perfeito,

tenho uma leve impressão,

não presumo causa ou efeito,

nem lhe encontro uma razão.

 

Sinto que sinto algo vão,

que sendo esparso levo a eito,

não fico preso por sim ou não

nem levo razões a peito.

 

Entre sim e não há defeito,

um compromisso com a razão

e só no futuro perfeito

saberemos se sim ou não.

 


 

terça-feira, 23 de julho de 2024

PASSOS PERDIDOS



Já não passas como passavas

na velha rua onde moro,

não me vias nem olhavas,

eu ainda por cá me demoro.

 

Agora, passo dias sem fim

rua abaixo, rua acima ou quase,

olhando para trás de mim,

com medo que a sombra se atrase.

 

Espera, oiço-te agora passar

e toda a cadência é do andar teu,

ou então sou eu para te imitar,

que afinal o andar é o meu.

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

CAMINHOS


Caminho até onde posso ir

sentado na velha pasteleira,

escolho o trilho sereno

das árvores, das árvores gigantes,

partilho com elas o bosque,

a terra, o vento, cada clareira,

e mais nenhum itinerário é agora

igual ao que foi antes.

No caminho das bétulas

havia lugares mais aprazíveis,

porque a idade é capaz de milagres…

Veio depois um tempo

em que o toque de uma folha caduca

era o beijo juvenil que me faltava.