quinta-feira, 30 de novembro de 2023

SOLSTÍCIO


 

O Sol e as nuvens brancas

choram, à vez, no rio da minha terra,

o anunciado inverno.

Eu soletro mágoa e digo lágrima;

soletro ave e digo pena…

Água de algum lugar chove em mim,

deixando-me sem palavras enxutas.

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

VERSOS PERDIDOS


Com o tempo sucumbem os versos quebradiços,

mesmo os que antes giravam em carrossel,

são agora memórias, talvez reais, submissos,

e tresandam a tinta e a folhas de papel.

 

Mudam os tempos dos verbos para os passados,

que os há também actuais, sobreviventes

à custa do garimpo e da salvação dos mal-amados

versos que um dia foram chatos, impertinentes.

 

Não há meio de conseguir uma conciliação

e os versos, felizes com a escolha, é o que penso,

assomam às folhas perdidas, de aluvião,

 

cuidando confundir-me, quais carvões de incenso,

mais não podem que uma tremenda confusão,

há tanto tempo perdidos, nem eu a eles pertenço. 


 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

AS TRÊS NOZES


São elas, mais do que as nozes, as vozes:

a noz da guerra, não parte, rebenta, ai de nós.

A noz da fome, dura de roer a quem a come;

a quem a tome e não consome tem outro nome.

Sobra uma terceira noz, noz como nós, basta vê-la

e surge, de viva voz, o desejo. Apetece comê-la.

 


 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

PALESTINA II


A um canto da revolta, o canto

e a lágrima em forma de coração,

seca. Um mar de desencanto.

A alma cheia e um pranto de razão.

 

E a razão é um pássaro altivo,

à afronta não cessa o voo nem cala,

antes morto que cativo

e a sua lágrima é em forma de bala.

 


 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

HISTÓRIA(S)



Montado no meu cavalo de prata

empunhei sozinho a espada

de Afonso Henriques e logo ali

trespassei os sete ladrões que a roubavam.

 

Sete anjos de grandes bigodes

acenaram-me, lhanos e garbosos,

de cada uma das sete colinas de Lisboa,

que mereceram o meu apreço e saudação.

 

O primário manual de história tinha o condão

de me criar épicas ilusões, nunca aproveitadas:

continuei comendo do requentado caldo,

mentindo a mim mesmo esta verdade.

 


 

domingo, 30 de julho de 2023

A CASA


A casa é um feitiço

ainda não descoberto,

está onde está, por isso,

é um longe sempre perto.

 

É um lugar da lembrança

ou o pouco guardado dela,

um atalho de esperança,

uma porta e uma janela.

 

É de mil coisas lugar,

restos de ter e haver,

sítio a que chamamos lar,

sobras, algumas por varrer.

 

Mas um sítio imaculado

em pouco tempo, e o futuro

é o provável culpado

dos caminhos em que me aventuro.


 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

JÁ LÁ VEM O MEU AMOR


O meu amor é tão lindo,

a mim sabe-me tão bem,

meu bem seja bem-vindo,

meu amor que já lá vem.

 

Bamboleia no carreiro

ao meu encontro, lá vem,

passinho certo e ligeiro,

olha a pressa que ela tem.

 

Traz uma flor no cabelo,

da trança pende um lacinho

e o seu rosto, só em vê-lo,

deixa-me a mim p´lo beicinho.

 

Já me viu e vem sorrindo

de muito me querer bem,

meu bem seja bem-vindo,

meu amor que já lá vem.


 

domingo, 16 de julho de 2023

NTÍCIAS


A triste notícia é que o meu gato morreu

tão longe e tão inesperadamente, defunto,

que fico sem saber se o gato era o meu,

se era ele ou eu ou ambos em conjunto.

 

Notícia não menos amargurada e triste,

causadora de dor e idêntico impacto,

é o porquê desta mágoa e luto que persiste,

se o médico me diz que nunca tive um gato.


 

terça-feira, 27 de junho de 2023

LÁ VEM O BARQUEIRO

Lá vem o barqueiro…

Sem barco vem a nado

traz boia e colete enrolado,

não vá o mar traiçoeiro

tirar-lhe a vida que tem.

Lá vem o barqueiro, lá vem…

Esbraceja como louco

(já falta pouco, já falta pouco)

barqueiro, que nem barco tem,

barqueiro sem barco é ninguém.

E que é do barco que não tem

o barqueiro de nomeada,

ter braços para a empreitada

é ter tudo para chegar.

Sorte do barqueiro que tem mar.

Antes o mar, antes o mar,

mesmo profundo e sem pé,

que a vida inteira a remar

contra a maré.



 

domingo, 28 de maio de 2023

UMA VIDA ASSIM


Em nada me importa a morte

e menos ainda o seu futuro.

Dão-me que fazer as papoilas,

lenços vermelhos das searas,

ou airosas pontuando os campos em pousio.

Quero prados de papoilas à minha volta,

cantando os hinos

que só elas são capazes de cantar.

Quero um grito de revolta,

a liberdade de me erguer seara adentro

e viver a liberdade a tempo inteiro. 


 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

VIDA MORTE DE UM RETATO


Alguma coisa em vida

tem semelhanças com a morte;

alguma coisa na morte perpetua a vida,

com um pouco de sorte.

 

Um retrato, por ironia ou graça:

existia há anos no aparador

e só agora, como o tempo passa,

reparamos e lhe damos valor.

 

Era boa pessoa, um santo,

condição que em vida nunca ouvira…

E agora objecto de atenção e pranto,

tarde demais para quem já não respira.


 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

HABUNDÂNCIA


 

há um sol que nasce

para todos um sol que nasce

 

há uma nascente

com sol para todos

 

há um todo de nascente

e sol que é de ninguém

 

há um raio de sol

uma gota de água na nascente

 

há sombra e sede

num caminho para nenhures

 

há flores azuis a poente

que lembram o sol e a sede


 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

TRICÔ DE PALAVRAS


Ao cair da tarde

volta o tricô das palavras perdidas,

as de ontem, algumas de amanhã,

mas todas como novas, de hoje.

 

O poial ao redor da casa

escalda. Não por ser Verão,

mas porque as palavras aquecem.

A manta, a camisola ou o naperon

podem esperar.

Agora é apenas o tempo de tricotar

as palavras mais urgentes.


 

sexta-feira, 31 de março de 2023



 

Um dia de Abril deu luz à minha casa,

tudo se tornou claro e transparente

como o vento que, num golpe d´asa,

nos mostrou o futuro ali presente.

 

E, de repente, todas as casas à volta

clarearam como sóis de alento

e sorríamos, andava a Liberdade à solta

num vaivém de asas e de vento.

 

Mudaram de lugar o Sol e a claridade,

ocultos entre as malhas que o império tece,

mas quem viu aquele Abril de tenra idade,

não perdeu o brilho e não esquece.

 

sábado, 25 de março de 2023

SONHO


SONHO

 

Sê sincera

não me ocultes nada

deixa que te veja como se fosses transparente

ou melhor, como se não existisses.

Despe-te.

Consegues ver-me?

Que mais vês além da nuvem

há uma eternidade prestes a desabar, torrencial?

Esse é o meu melhor momento:

aquele que vou adiando,

como é o teu aí prostrada,

nua, contemplando um sonho a haver.