domingo, 28 de maio de 2023

UMA VIDA ASSIM


Em nada me importa a morte

e menos ainda o seu futuro.

Dão-me que fazer as papoilas,

lenços vermelhos das searas,

ou airosas pontuando os campos em pousio.

Quero prados de papoilas à minha volta,

cantando os hinos

que só elas são capazes de cantar.

Quero um grito de revolta,

a liberdade de me erguer seara adentro

e viver a liberdade a tempo inteiro. 


 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

VIDA MORTE DE UM RETATO


Alguma coisa em vida

tem semelhanças com a morte;

alguma coisa na morte perpetua a vida,

com um pouco de sorte.

 

Um retrato, por ironia ou graça:

existia há anos no aparador

e só agora, como o tempo passa,

reparamos e lhe damos valor.

 

Era boa pessoa, um santo,

condição que em vida nunca ouvira…

E agora objecto de atenção e pranto,

tarde demais para quem já não respira.


 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

HABUNDÂNCIA


 

há um sol que nasce

para todos um sol que nasce

 

há uma nascente

com sol para todos

 

há um todo de nascente

e sol que é de ninguém

 

há um raio de sol

uma gota de água na nascente

 

há sombra e sede

num caminho para nenhures

 

há flores azuis a poente

que lembram o sol e a sede


 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

TRICÔ DE PALAVRAS


Ao cair da tarde

volta o tricô das palavras perdidas,

as de ontem, algumas de amanhã,

mas todas como novas, de hoje.

 

O poial ao redor da casa

escalda. Não por ser Verão,

mas porque as palavras aquecem.

A manta, a camisola ou o naperon

podem esperar.

Agora é apenas o tempo de tricotar

as palavras mais urgentes.


 

sexta-feira, 31 de março de 2023



 

Um dia de Abril deu luz à minha casa,

tudo se tornou claro e transparente

como o vento que, num golpe d´asa,

nos mostrou o futuro ali presente.

 

E, de repente, todas as casas à volta

clarearam como sóis de alento

e sorríamos, andava a Liberdade à solta

num vaivém de asas e de vento.

 

Mudaram de lugar o Sol e a claridade,

ocultos entre as malhas que o império tece,

mas quem viu aquele Abril de tenra idade,

não perdeu o brilho e não esquece.

 

sábado, 25 de março de 2023

SONHO


SONHO

 

Sê sincera

não me ocultes nada

deixa que te veja como se fosses transparente

ou melhor, como se não existisses.

Despe-te.

Consegues ver-me?

Que mais vês além da nuvem

há uma eternidade prestes a desabar, torrencial?

Esse é o meu melhor momento:

aquele que vou adiando,

como é o teu aí prostrada,

nua, contemplando um sonho a haver.


 

quinta-feira, 23 de março de 2023

CONDENADO AO AMOR

 


 

Acusado de um beijo

na forma tentada,

é simples ensejo

para pena pesada:

 

aérea fantasia

de fogo fátuo,

espontânea poesia,

versos de amor perpétuo.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A VOZ DO MAR


O mar atirou-me

um búzio para que ouvisse

o som das suas loucuras,

dos seus lamentos.

Começou por uivar blasfémias,

que todo o som ali contido

era tudo quanto existia,

que todo o som ouvido

além do búzio

continha perigos

difíceis de conter e imaginar.

Ele, o mar, era o senhor absoluto

de tudo quanto existia:

uuuuu…uuuu… uuuu… - Dizia.

Ele era a alegria e o medo;

o bem e o mal;

a palavra e o segredo.

Era ainda o horizonte e o infinito

e o sal da verdade.

Deus, qualquer deus era invenção sua,

dele, do mar.

Senhor da língua e das onomatopeias:

Uuuuu…uuuu…uuuu…

Mar por ser imenso, como gente,

tudo e nada dentro de um búzio, apenas.


 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

FANTASIA



Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:

busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…

e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,

já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

 

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.

Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,

me cega e convoca mais premente e mais fundo,

muito aquém donde começa; muito além donde termina.

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

RODA DA VIDA


Havia uma roda, a roda rolava

por ser seu ofício, ofício de roda,

que rolando a seu modo andava

rodando toda a vida, não a vida toda.

 

A roda era a água e a água escondida

rolava a roda na roda em seu labor

em busca de água, de água e de vida,

sem queixa nem mágoa, como prova d´amor.

 

Passou o tempo, a água também.

O vento, o sol, o bom e o mau tempo

e uma vida inteira, que nunca se atem,

sem vida nem roda, água de ar e vento.

 


 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

MALES DE ALMA



 

Há dias em que a alma vai com a camisa usada

e nem damos conta de ficar em tronco nu dentro do peito.

De pronto, uma réstia de sol dissipa a madrugada,

ateia o fogo e faz-se água cristalina o gelo contrafeito.

 

Melhor assim: alma escovada, uma penugem dispersa

própria da idade. Nada há como sentir o que de nós se fala.

Breves correntes de ar, alguma náusea de forma imersa,

que vindo à tona, vê-se na cara, logo se acorre a calafetá-la.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

O TEMPO DA POESIA


Naquele tempo a poesia poisava nos laços

das raparigas até serem adultas

e desfazerem as tranças;

vinha com o cheiro do leite, comprado à porta,

que perdurava na rua durante horas;

trazia os pássaros até às nossas pequenas mãos,

mesmo quando não tinham fome;

rebolava pelas encostas dos montes

e misturava-se com a palha e a terra, e magoava-se.

Depois passou para o domínio dos poetas;

escreveram-na em livros e pintaram versos nas paredes

para a devolver às ruas da amargura.

Há cachos de versos ainda debruçados nas varandas,

mas a poesia nunca mais foi a mesma.


 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

RUGAS


Rugas são folhas soltas, linhas de delongado fadário,

para serem lidas ao serão. Fora disso são somente pregas,

retalhando o rosto, inexoráveis, a golpes de calendário,

histórias escritas em braile, crespas, rudes, cegas.

 

Ao contrário do que se diz, não se prova o seu proveito;

ninguém encomenda rugas, ninguém as quer no rosto.

Está provada, sim, a sua voz; gritam, e com efeito,

estão para as faces envelhecidas como o vinho para o mosto.

 


 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

RESGATE

 

Escalo-te os lábios de sol a sol, de sal em sal,

onda que no vaivém se agiganta e logo espraia,

o pretexto dos lábios, a onda, e logo o areal,

as conchas, os búzios. Por fim a imensa praia

 

de areia fina, manso lençol de pura seda…

Ah, a minha sede de náufrago agora resgatado

por um beijo de sal, de sol, de súbita labareda,

vivo em paz e em sossego só por te ter beijado.