segunda-feira, 30 de setembro de 2019

REMORSO


Ao derradeiro homem a derradeira árvore,
ela já sem raiz, um galho moribundo
e ele trespassado de remorso.
A vida, sem regresso, acaba neste instante.

Perdeu-se a nostalgia e o desencanto
e as lágrimas já não nos pertencem;
foram choradas, foram o passado de melancolia
e não restaram para os pêsames ensaiados.

Tudo era falso, incluindo as boas vontades,
o medo que tudo se perdesse e o amor jurado.
Tampouco faz sentido dar nome ao quer que seja,
nada existe já, tudo é fingido como sempre.

sábado, 28 de setembro de 2019

DAS ERVAS, COM RESERVAS


Daninha é a erva pobre,
que às demais pede esmola,
réstia de alimento que sobre,
seja o que for a consola.

Cresce à míngua e ao favor
do pouco que se alimenta,
mas logo se ouve em redor
“tal é a gula, que rebenta.”

Onde foi que eu já ouvi isto
sem ser às ervas do prado?
P’rà próxima que ouvir registo,
sei que ouvi em qualquer lado.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

BARCOS AO SOL POENTE


O Sol suspira ainda,
vem saudar os mareantes,
dar-lhes a boa-vinda,
sorrir por breves instantes.

Salve, pescadores!
(é o que parece dizer)
Finda o dia, não as dores,
outro dia há-de nascer.

E todos os dias vem
acompanhar a jornada
salvo imprevisto de nuvem
ou súbita trovoada.

Vive ao dia o pescador
com a sina que lhe toca;
às vezes mal, outras melhor
e morre o peixe pela boca.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

ÁGUA LIVRE



Sobre a água, as águas mansas, flutuam
negros pássaros, que negro é o seu manto
e a sede alheia, a sede já cansada de o ser…

Querem a nascente e a foz, sôfregos,
para que não sobre uma só potável gota,
represa das suas estranhas sedes, das águas turvas.

Como pode a água, a água que silva de pedra
em pedra na ribeira, não pertencer
ao Sol que a beija, à terra que a embala
e à sede natural dos nossos lábios?

sábado, 21 de setembro de 2019

LUA OBSCURA


Não é de confiança a Lua…
Dizem que mente e que instiga
mas é tudo muito nublado…
Às vezes a Lua conta-me alguns segredos, confesso,
nada que tenha interesse partilhar,
apenas me satisfazem a mim
por serem meus os segredos
e por ser ela a desculpa para os ter.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

OS MEUS VERSOS

~

Os meus versos são pó, restos de pesticidas
e alguma terra amanhada à espera de semente.
Caso a verdade fosse outra, eu mesmo
tomaria a iniciativa de tornar claro,
que os versos levam muita deriva nos regos d’água,
muita espera e oração pagã, algum suor também.
Acontece que lhes tenho estima
e eles, generosos como sempre, sabem confortar-me.
Dou liberdade aos que vão ganhando asas
e conforto os enjeitados, os únicos que ficam comigo.
Quem sabe um dia se soltam ligeiros e vão poisar
no ramo mais frondoso duma árvore que os declame. 

terça-feira, 17 de setembro de 2019

REVISÃO EM ALTA


Revi todos os meus lugares antigos
e todos me reconheceram…
Reparei que alguns me acompanharam
no tempo por mero instinto de sobrevivência.

Os demais, como eu, continuarão este caminho
e a memória não será a mesma,
excepto este avanço que lhes levo. Involuntário.

A minha alma, que trago guardada
para uma emergência descobre fantasias em tudo isto.
Nada de grave. Nada é eterno.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A COISA




A coisa é um trapo
um tamanco
um papel em branco
um buraco
a coisa é um bicho
um olho vazado
o caldo entornado
que vai para o lixo
parva que a coisa é
pulga de cão
salta pró chão
pelo próprio pé
qual coisa qual nada
a coisa está feita
com a direita
escrita e falada
a coisa é fascista
um boneco
um pato marreco
um galo de crista
seja coisa ou não
ferida que infecta
ou falso profeta
na televisão

a coisa esfuma
incha como espuma
e não é coisa nenhuma