segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

MALMEQUER


Malmequer a vida inteira,
bem me quer a pura flor.
Este mal, queira ou não queira,
é, meu bem, um mal menor.

Bem me quer eternamente,
o bem querer adivinhado.
Com o bem, bem pode a gente;
com o mal é que é o diabo…

Pior, mas muito pior,
por cada pétala arrancada
para em vão buscar amor:
- mal me quer, muito, pouco, nada.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

HELA


Dizem que vem sem avisar, pé ante pé,
que é furtiva e, amiúde, traiçoeira.
Negra como a noite, não sei se é se não é;
assim a pintam, quando não doutra maneira.

Outros acham que é fado ou fatalidade,
que alerta e dá ares de ser, que se anuncia,
traja de branco e toda ela aparenta castidade,
não fosse a contrariedade de se servir fria.

Não tenho em minhas mãos como sabê-lo,
por ser coisa do acontecido e do acontecer
e não me mata a curiosidade um só cabelo,
nem estou inquieto ou morto por saber.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

DA LÍNGUA PORTUGUESA


Esbanjamos as palavras até à míngua,
rudes garimpeiros de águas turvas;
na verdade, maltratamos a língua,
vendemo-la e estamos aqui p’ras curvas.

Essa, que os eruditos dizem de Camões,
e aos poetas dá tantas dores de cabeça,
anda por aí aos acordos, aos encontrões,
fingindo não haver mal que lhe aconteça.

No escrever e no falar é dor d’alma,
ver a língua tratada de qualquer maneira:
ao bom senso não se dá a palma
e no fim ou entra mosca ou sai asneira.

Também os tempos verbais e as corruptelas
já não dão para ninguém ficar calmo,
até um dia andarmos às apalpadelas
e pagarmos, bem pago, com língua de palmo.

Uns, porque o que mais importa
é que, em síntese, a gente se entenda;
outros, porque das regras fazem letra morta,
não tardará quem ponha a língua à venda. 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

LUA ATRIBULADA




Ao cimo da ladeira,
ao fundo da rua,
abre a clareira
e vê-se a Lua
nublada, errante,
despida, nua,
em quarto minguante,

em quarto minguante,
despida, nua.

De candeia acesa,
de nuvem vestida,
não tem a certeza
se é luz indevida
ou só ela pressente
uma réstia de vida
em quarto crescente,

em quarto crescente
uma réstia de vida.

domingo, 15 de dezembro de 2019

O TEMPO DA ROSA


Explodiu uma rosa na palma da minha mão;
desfez-se em pétalas, letal estilhaço,
não tinha espinhos nem males de insolação;
foi de repente, explodiu de astenia e de cansaço.

Cansaço de não ser mais nada além de rosa…
Nunca como antes: apetecida rosa em botão
crescia no jardim, alteada pelo caule, viçosa,
jamais como depois, solitária rosa de imitação.

Será plástico, perguntava quem lhe passava a mão,
que artesão foi capaz de obra tão perfeita?
- Antes morta me quero, a este aperto de coração!
E assim explodiu de dor, na minha mão, desfeita.     

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

ESCADAS


Em um só segundo
se chega ao fim do mundo,
para tanto basta subir
as escadas para o conseguir.

Descê-las já não digo,
isso aconselho, meus amigos,
não é o mesmo, não se iludam,
nem todos os santos ajudam.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O RIO


Num impulso violento,
o rio dilacera a montanha;
abre um leito fecundo
e corre ligeiro para o mar.

Perde, pelo caminho,
a impetuosidade primordial…
Doce, lambe a terra áspera,
e descansa, por fim, exausto,
na praia da memória.

Os rios não morrem nunca.  


sábado, 7 de dezembro de 2019

É UMA PENA

É uma asa
uma casa pequena
não é uma casa
é uma pena

é um ninho de pardais
um imaginário bando
um a menos um a mais
que vai voando

é o tecto do mundo
a cair-nos em cima
de andar vagabundo
é o clima é o clima

um que vai e que volta
outro que já não vem
outro fica à solta
à boleia duma nuvem

são anjos alados
é quem mais ordena
é uma pena aos bocados
é uma pena

são os pássaros à toa
na eterna novena
é uma pena que voa
é uma pena é uma pena

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

INTERLÚDIO LUNAR (VARIANTE)


Não assistirei à floração dos jardins da Lua,
não chegarei a tempo para ver as flores radioactivas
explodirem cinzentas, nem o pó da natureza nua
cobrindo as vinhas doces que foram prometidas.

A Lua perdeu pontualidade sobre as ondas do mar
e é agora sombra da própria sombra rara e escura.
O tempo ganhou penumbra; perdeu de vez o luar
e morre junto à praia, que a Terra encharca de secura.

Não voltarei, que errante me perco na espessa neblina,
em tufos de gás e fumos, que o chão expele agastado.
Das fases ficou aviso para o vazio que domina
e o brilho, o encanto dos jardins, memória do passado.    

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

INTERLÚDIO LUNAR (PRIMEIRA FASE)


Não assistirei à floração dos jardins da Lua,
que me importa, se apenas a quero olhar…
Basta-me pálida, de manhã cedo, se saio à rua
ou noite fora, nua, lambendo o sal do mar.

Como agora se esconde, depois reaparece,
num jogo permanente de sombras e de segredos.
Ora em carne viva, ora quando desaparece,
qual areia fina que escorre por entre os dedos.

E sem o desejar volto aos presumidos jardins
lunares com botões de rosas, buganvílias, lilases,
esculpidos como futuros magistrais gradins.
Tudo é sonho e, tal como as da Lua, são fases.

sábado, 30 de novembro de 2019

À CHUVA


Uma gota de água fria
veio aquecer-se na minha
pele, que se arrepia
enquanto ela se aninha.

É da chuva que cai
subitamente do céu
miudinha, que vem e vai
e me apanhou sem chapéu.

A gota, na perfeição,
com pontaria e jeitinho
acertou-me com precisão
entre a nuca e o colarinho.

Que falta de delicadeza!
Não reparei que chovia…
Sou amigo da natureza;
Foi um balde de água fria!

A partida não teve graça
Nenhuma, passa por hoje
mas só desta vez passa  
na próxima já não me foge.

Deu-se às pressas a gota,
nem me deu tempo de um ai,
espinha abaixo, a marota,
sei lá onde ela já vai…

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

DEITAR CONTAS À VIDA


Quanto custa um malmequer,
que tenha a contrapartida
de só dizer bem me quer,
quero deitar contas à vida.

Quanto vale um girassol,
que por vontade assentida
não vire as costas ao Sol,
para deitar contas à vida.

E quanto é preciso penar
com conta, peso e medida,
para o cravo não definhar
e eu deitar contas à vida.

E a deitar contas à vida,
os anos em flor já lá vão…
o que sobra é tara perdida
e as contas certas ou não.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

TRÂNSFUGAS


Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo

dispara à queima roupa

verás o meu sangue ganhar terreno

ah a tua pressa
pode lá haver quem a denuncie!

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

NATUREZA CONTRADITÓRIA




O homem não deveria mexer onde a natureza
já fez tudo o que havia para fazer.
Mas o homem mexe por ser a sua natureza.

E nesta contradição vivemos:
o homem na natureza e a natureza do homem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

AGORA


São iguais o antes e o depois,
pretextos de quem chora:
não existe nenhum dos dois,
tudo o que existe é agora.

Antes, lágrima de saudade;
depois, um desejo ardente.
Nenhum é pois verdade;
tudo é fantasia, tudo é aparente.

A dor que dói é esta dor, não
me magoa a dor de outrora,
mas se depois, por qualquer razão,
voltar, será de novo agora.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

POSSIBILIDADE DE AGUACEIROS


Não sei o que pensa; se pensa o vento;
por que agita o ar; se é temperamento;
ou por que se aquieta e morre devagar,
quando me inunda o peito e deixa respirar.

É feitio seu; modo de ser da natureza
ou então coisa alguma, com certeza
flui por ser livre e ser ao mesmo tempo
etéreo, soberano, altivo, vento…

Vento que for, será sempre passageiro,
seja ele brisa ou desafio de aguaceiro,
cessando pouco a pouco até parar.

Todo o vento é bom para quem o desejar:
para mim, repito, quero-o manso ao respirar
mas o mesmo não serve para o moleiro.

sábado, 16 de novembro de 2019

FLORES À JANELA


Na janela vejo flores e elas
a olharem para mim
debruçadas são tão belas,
que só elas o fazem assim.

Sinto o perfume das flores
como tranças de uma fada;
regalam-me o cheiro e as cores
da floreira da sacada.

Fico suspenso, preso nelas,
como o caule que as alteia:
fazem-me adeus das janelas,
- adeus flores da minha aldeia.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

CORAÇÃO SOLIDÁRIO


Hoje vou abrir uma excepção:
vou simular que tenho uma pedra de granito
enorme no lugar do coração.
Que não sinto, que não preciso do teu ombro
e tudo, em mim, me é indiferente.
Subirei o mais alto que puder, à mais alta montanha,
e aí tocarei o sol, queimarei as mãos.
Toda a areia das minhas lágrimas
atulhará o oceano, dará força e consistência
ao clamor dos povos da América do Sul.
Beijarei depois as mãos do povo Inca,
uma por uma, e juntos gritaremos ao mundo:
La union es la fuerza!

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

AS CASAS DE NOVO


Ao longe as casas, memória delas,
há tanto tempo, que são as casas agora?
Portas, varandas, alpendres, janelas
ou quartos e salas onde gente mora…

As casas, de pedra e cal, dormem o seu sono;
cobrem-nos os sonhos em silêncio profundo.
As casas ao longe são como um trono
e por dentro verosímeis interiores do mundo.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

RISO


Por falar em riso, que a loucura, insatisfeita,
sempre agradece, direi que o Sol desta manhã
surgiu como uma imensa gargalhada.
Nada diria sobre este assunto se ontem
o dia não tivesse estado uma lástima cinzenta,
sisudo, como se quisesse dizer que o Sol
tinha mudado de mundo de uma vez por todas.
Toda a loucura se compraz com estes prodígios
e se voltar a chuva e depois o Sol voltarei a rir,
que a loucura, insatisfeita, sempre agradece.  

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

OS MARGINAIS


Ei-los, que se atrevem de novo,
espalhando aos quatro ventos serradura,
que sangre a gente, que cegue o povo
e se abra caminho a nova ditadura.

Grunhem, uivam em desespero,
abrigados no fino manto que os cobre
mas por mais que finjam no tempero
não passam de pregoeiros de peixe podre.

Mas insistem em descobrir argueiros
nos olhos já cansados só de os ver:
damas de alfinete, caceteiros
e os demais que o diabo há-de trazer.

A todos eles, cá os esperaremos de atalaia,
haveremos de merecer a terra onde nascemos,
não permitindo que gente dessa laia
nos traga de novo as feridas que tivemos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O CORVO E O GATO


o corvo pega
pega o gato
sape pega
sorte do gato

sem há fim à vista
o desiderato
o corvo que insista
que disfarce o gato

-ai corvo amigo
lá pensa o gato
chamava-te um figo
à mesa no prato

-gato maltês
pareces o diabo
espera e já vês
que te como o rabo

sábado, 2 de novembro de 2019

DIA DE FINADOS


Um dia tudo acaba.
Ficam as flores envelhecidas numa jarra esquecida;
um par de sapatos velhos e sem atacadores no sótão;
os papeis a que tínhamos perdido o rasto;
as últimas tarefas, aquelas que não se realizaram
por falta de tempo, que inexperientes e incautos
(os outros chamavam-lhe teimosia) julgámos ter de sobra;
e a memória, se a deixarmos, num retrato do aparador.
Se mais memória de nós houver, talvez a evocação
anual do ente que tão cedo lhe foi ceifada a vida
ou tão generosos lhe foram os longos anos de existência.
Eis a vantagem do que de si se pode ainda presumir.
Depois, trocaremos o vocabulário pelo silêncio
e ninguém mais se lembrará de tais lamechas.
Então, muitos teremos direito a flores.
Umas em plástico, muitas sem tamanho merecimento.


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

AS PENAS


O que nos faz voar é as penas; as asas são adiáforos
que iludem os caminhos…  

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

TUDO ESTÁ BEM


Enquanto a Terra faz o giro de serviço,
as plantas crescem como convém.
À parte disso
tudo vai bem.

Às vezes uns contratempos dão reboliço
uns com infortúnio outros sem.
À parte disso
tudo vai bem.

A América só tem guerra a sul, valha-nos isso;
do norte, olham o sul com desdém.
À parte disso
tudo vai bem.

Já a velha Europa é uma estação fora de serviço;
aluga carruagens de um comboio que vai e vem.
À parte disso
tudo vai bem.

Todas as religiões anunciam um paraíso,
prontas para o vender a quem não tem.
À parte disso
tudo vai bem.

As grandes empresas nunca têm prejuízo,
sem reportarem à custa de quem.
À parte disso
Tudo vai bem.

Há milhões de crianças em busca de um sorriso,
têm de seu o sono e os sonhos como ninguém.
À parte disso
tudo vai bem.

À parte disto
está tudo bem.

domingo, 27 de outubro de 2019

NADA


Nada não existe por nada ser,
que sendo nada, algo tem,
alguma coisa tem de acontecer
para ser nada, de onde vem?

Nada é o que não tem nome
e morre antes de nascer;
é o mesmo que morrer de fome
sem ter vontade de comer.

Ou seja, é conversa fiada,
quando nada há para contar
e então alguma coisa é nada,
para tanto dar que falar.

O tempo que leva isto tudo
sem encontrar substância
é porque o nada absoluto,
mais que tudo é abundância.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

VIDA


Dentro de mim há uma criança feliz,
que não cessa de brincar;
por fora, o balão sobe… A cada dia mais alto.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

ROMPER O CERCO


Rompo a campânula e dou o salto
o mais longe que puder, o mais alto.

Recuso a entrevação, a vida morta.
Então, vou arrombando a porta,

Com este marasmo desespero
e isso é que não, isso é que não quero.

Irei por aí, livre, talvez ousado:
- a senda há-de levar-me a algum lado.

Se não levar, se já não houver estrada,
deixem-me ficar, esperarei p’la alvorada.

E, pelo sim, pelo não, sigo. Parar é nada.


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

MENINO DA RUA


Na montra da loja há brinquedos
para todos os gostos: um boneco que chora,
outros com mil segredos,
uma princesa bondosa, mas não olhes agora…

Bruxas más, boazinhas e fingidas,
que em vez de cara têm uma abóbora
e há livros de cores garridas
com histórias de encantar, mas não olhes agora…

Mas não olhes agora. É tarde, começa a escurecer,
apagaram as luzes, a loja vai fechar,
não dão tempo a perder,
faz frio na rua, já podes olhar.

sábado, 19 de outubro de 2019

SORRISO


O sorriso é um cavalo à solta
galopando através da boca
o resto é fruto
da imaginação dum puto
que não quer comer a sopa.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O DESGASTE DAS PALAVRAS


O desgaste das palavras obriga a contenção…
Há flores de sobra que, em suma, são isso mesmo, flores.
Não criam atritos e o seu aroma pode até unir
contrários, serenar azedumes e colorir todos os cinzentos.

Lamento esta falta de imaginação, as pétalas
das palavras falecem com o tempo; caem moribundas
e não há como usá-las de forma aromática e colorida,
capaz de unir os desavindos, os que sucumbem à solidão.

Haverá um meio, talvez uma fórmula ardilosa
de suprir com flores os lugares deixados pelas palavras.
Pensei nessa transformação, afinal tão simples como respirar,
dei-lhe o nome de princípio essencial da mentira.  


terça-feira, 15 de outubro de 2019

QUERIDAS CEGONHAS


Há cegonhas que já não se dão ao trabalho
das migrações
aqui têm casa, que vão ajeitando galho a galho
durante gerações.

Por cá têm vida estável e habitação social,
salvo eventual revés,
aqui vivem e morrem de morte natural
e são elas que trazem os bebés.

Faz parte da paisagem permanente,
este príncipe das nuvens, voador:
plana, compete com o céu diariamente,
é a gaivota do interior.