domingo, 30 de dezembro de 2012

NOVÍSSIMO EQUILÍBRIO



A este canto não acorre mal
e mal que for não tem comparação
ao susto, ao calibre que por aí se USA;
a este canto não acorre nada.

Neste canto ileso ninguém implora,
chora, perde tempo com orações e preces,
se derrete na erupção súbita da montanha:
neste canto não ocorre nada.

Neste canto, quase ingénua sepultura
de orgasmos sonoros ou talvez tímidos,
emprenham à vez mulheres e cabras sãs:
a este canto não acorre nada.

Neste canto não ocorre nada.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O PRIMEIRO MILHO


“O primeiro milho é dos pardais”
-e tu, onde pensas que vais?

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

NEM TAIS NEM MAIS


O tempo que me foi de desenganos,
(da esperança vã ao engano puro)
numa correria de anos e mais anos
com os olhos sempre postos no futuro.

Tenho agora tantos anos como natais,
o que, a dividir por dois, não é muito.
É como digo: nem menos nem mais,
e ponho já uma pedra neste assunto.

domingo, 23 de dezembro de 2012

COLECÇÃO DE HAIKAIS SOBRE UM FÓSFORO ACESO



Fogo-fátuo
é fumo consumido
- a labareda morta.

Um clarão, nada
mais que um lampejo
extinguindo-se.

Chama efémera
chama-me e
arde-me, ateia-me.

Cinzento é tudo
o que arde dentro
por dentro.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

POEMA DO MEU NATAL


Não se sabia quantos sóis haveriam de nascer
ainda e quantas luas novas e quartos crescentes
e luas cheias e outra vez quartos, mas minguantes,
e já eu dava sinais de desassossego, às voltas
de outra coisa redonda, que era o ventre da minha mãe.
Depois nasci e, sem me conhecer (nem eu a ela)
fui assistido sujo e nu por uma parteira velha
e experiente, porém simpática, foi o que me disseram.
Bastou tirar os cinco quilos de mim daquela aflição
para acreditar sem esforço nas suas qualidades.
Nunca sobre isto se escreveram estórias transcendentes,
comemoro normalmente os meus aniversários,
embora preferisse manter-me sem eles, os anos,
que, todos juntos, me vão dando algum trabalho.
Já lá vão sessenta e não estou arrependido de nada.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

NATAL DO PINTAINHO


Saiu a tempo, em tempo o pintainho
para ser o natal de quem o come.
Em casa de pobre vai chamar-se peru,
vão chamar-lhe um figo,
o pintainho é que não terá oportunidade
de chamar mais seja por quem for,
apesar de ter muitos nomes o natal cristão.

domingo, 16 de dezembro de 2012

COMISERAÇÃO


Quero dar-vos conta do que entendo por comiseração.
Aumentou a esperança média de vida, acontece
de vez em quando, mas isso não faz parte do poema.
Todos os dias me levanto cedo
para ver primeiro o que os outros só verão depois
e para mim já não constitui qualquer novidade.
Não é bem este o motivo que me leva a saltar da cama
aos primeiros acordes do galo de serviço:
levanto-me e acontece que não vejo nada de especial,
a não ser os vizinhos que, por qualquer motivo,
têm que madrugar e amanhecem com o rosto amargurado.
Começo então o poema:
é sobre o que entendo por comiseração.
Os cães farejam ainda indecências e lixos nocturnos;
os gatos, esses, dormem finalmente o sono dos justos.
Eu percorro a cidade sem audição ou cheiro: vejo apenas.
Olho para tudo o que sempre esteve, inexorável,
no mesmo sítio. Trauteio os restos de uma melodia da véspera,
como um disco que se partiu e repete
aquele momento imprevisto e absurdo e coço
a virilha direita, não porque tenha comichão,
mas porque é hábito coçá-la como todos os homens fazem.
No céu, os pardais ou outros pássaros cinzentos
que os substituem para me confundir,
parecem-me contrariados e eu tenho pena deles.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

POEMA DATADO



Não dato este poema
de Água Derramada
porque não estou lá,
perto de Grândola.

Tampouco de Nova Iorque
porque nunca lá passei,
bem como da Lua,
que vejo sempre daqui.

Este poema leva
uma data de tempo
em que permaneço
por aqui, no universo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

DESTA ÁGUA BEBEREI


Há coisas que nunca farei,
por exemplo: correr atrás de galinhas.
Não faz o meu género
e ainda menos o delas.

Na capoeira, que é o seu lugar,
na panela, que é o seu destino,
mas num poema para quê
se apenas eu esgravato?

Nunca me tinha acontecido
galinhas invadirem-me um poema
(primeira e última)
Vou correr com elas de vez.



terça-feira, 11 de dezembro de 2012

AI, POESIA


Não tenho o direito de dar à luz
todos os poemas que construo
entre as veias e a memória
(creio que é por aí…)

Muitos ficam irreconhecíveis;
aguados de náufragos vocábulos,
onde as palavras socorristas
não chegam ou não lhes podem valer.

Chega mesmo a acontecer
ao verso afoito e já metáfora
perder o poema, ainda a caminho,
algures, preso ao âmnio preguiçoso.

domingo, 9 de dezembro de 2012

AGORA



São iguais o antes e o depois,
pretextos de quem chora:
não existe nenhum dos dois,
tudo o que existe é agora.

Antes, lágrima de saudade;
depois, um desejo ardente.
Nenhum é pois verdade;
tudo é fantasia, tudo é aparente.

A dor que me dói é esta dor, não
me magoa a dor de outrora,
mas se depois, por qualquer razão,
voltar, será de novo agora.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O SOL E AS NUVENS




Vem aí um sol com nuvens que não vejo
ainda, nem sei qual dos dois vai dominar:
sei que um se anuncia e é meu desejo
e outro que se interpõe sem se anunciar.

Dos dois não há escolha, não há opção:
um é o desejo, o rumo dos nossos passos;
o outro é o que se tem por contradição,
mas nada disso nos fará baixar os braços.

Sobre a tese, a antítese e a síntese, aprendi
que toda a vida se faz de contestações,
de dúvidas, de refazimento aqui e ali

e sei também que muitas são as contradições
do sol que conforta e queima só por si.
E se assim não for, haverá ainda mil soluções.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

MADEIRO


Ensopado de maresia até aos joelhos,
acompanhava os das sortes na recolha da lenha
e desta, pelo menos um ou dois madeiros que se vissem.
Todos cantávamos, alegres,
apesar da estafa de uma tarde inteira,
por caminhos maus, que não eram maus caminhos.
Um paganismo digno de um painel de azulejos…
Só o fogaréu dessa noite, talvez da próxima,
compensava tamanha empreitada.
Depois as brasas e por fim as cinzas:
sempre ficam as cinzas, eternamente cinzas.



segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PAPA PRESÉPIOS


Maria sempre virgem que nem o musgo orvalhado,
e, com mil requebros, recolhido da dura rocha
pelas minhas mãos infantis e crentes de tudo.

Eis o presépio mais estúpido, de quantas coisas estúpidas
se podem anunciar, salvo as minhas mãos
e a inocência perdida em dois mil anos de imposturas.

Sobre a vaca e o burro mais nada há que se diga:
o burro era burro, qualquer um sabia
e a vaca, afinal, não passava duma … vaca.

Apesar de tudo, duraram o tempo suficiente para os amar
a ambos, ao contrário do Menino Jesus,
cinicamente nascido e crucificado, ano após ano.

Que pai ou mãe suportariam tal martírio,
senão uma família assexuada, fútil e perversa,
capaz de cuspir na minha mão pueril suja de musgo?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

AS VOLTAS DO MUNDO EM "A VOLTA AO MUNDO"

Pois aqui estou perante os meus amigos, confessando que, agora, acabei de ler a Volta ao Mundo de Ferreira de Castro, trinta e oito anos após a morte do autor, que datou a conclusão desta sua extraordinária obra em Agosto de 1944, edição da Editora Guimarães & Cª.
Trata-se de um dos mais ilustres escritores portugueses do século passado. Um observador atento da realidade envolvente, acutilante, capaz de nos fazer viver o que descreve e um humanista sincero como cidadão e como escritor.
Talvez não tivesse a mesma emoção se não vivêssemos nós, nos dias que correm, as vicissitudes nefastas do apertar da malha do capital financeiro internacional que, mercê do executivo fantoche que nos governa, nos obriga a inúmeras manifestações de massas de grandes proporções, à recente greve geral de ímpar amplitude e aos consequentes embates com as chamadas “forças da ordem”, sempre inocentadas nestes confrontos…
Abro por isso uma excepção em Corpo de Poema para transcrever um trecho da obra ímpar de Ferreira de Castro, aquando da sua passagem por Chicago e nos lembra e relata a origem do 1º de Maio.
Talvez pela actualidade que o tema, infelizmente, adquire nos dias que passam, aqui vos deixo sem mais comentários, o texto referido:


…”Ora, no dia 1º. De Maio de 1886, reunira-se aqui, em Chicago, um congresso de operários. As ideias anarquistas estavam, então muito em voga. Grande percentagem, senão a maioria do proletariado universal, tendiam para o anarquismo e anarquistas ou anarquizantes eram os intelectuais que pela causa do proletariado se interessavam. Os congressistas de Chicago militavam também na mesma doutrina e pretendiam apressar a conquista daquele horário (oito horas diárias) – um horário menos violento, menos desumano do que o existente até ali. A polícia de Chicago entrou, porém, no edifício e, como quase sempre a polícia intervém em reuniões de operários, ao sair deixava, atrás dela, numerosos feridos, numerosos mutilados, gritos de desespero e de dor.
Para protestar contra as violências de que haviam sido vítimas, os operários voltaram a reunir-se três dias depois, em comício ao ar livre, numa praça desta cidade. A polícia voltou, porém, a intervir – e fê-lo com a mesma ferocidade de três dias antes. Mas quando ela espadeirava à esquerda e à direita, abrindo cabeças aqui, decepando braços acolá, trespassando peitos mais além, no meio do tumulto imenso, no meio dos gritos e dos gemidos, uma bomba explodiu e dez polícias morreram.
Jamais se soube, ao certo, quem a bomba atirou; oitenta e tantos homens foram, porém, imediatamente mortos como represália e oito foram presos e julgados como responsáveis pelo lançamento do explosivo.
Para um juiz desse tempo, anarquismo e bombas eram sinónimos – era tudo a mesma coisa. Sabia-se, assim, de antemão que os presos seriam condenados à morte ou a trabalhos perpétuos.
Uma vaga de idealismo impelia, contudo, numerosos proletários de todos os países até ao supremo sacrifício. E passou-se, então, aqui, algo extraordinário, que havia de emocionar o Mundo inteiro
(…)
Os oito homens, que alinhavam entre os operários mais cultos de Chicago, apresentaram-se no tribunal não como acusados, mas como acusadores. De longas cabeleiras românticas, como era de bom uso nessa época, eles tomaram, do princípio ao fim do julgamento, atitudes de protagonistas de poema épico. Eles sabiam que, com este procedimento, agravavam a sua situação e atraiam mesmo a sentença de morte que pairava sobre as suas cabeças; todos eles, porém, embora inocentes, preferiam manter-se à altura do papel que as circunstâncias lhes haviam criado do que mostrar qualquer transigência perante o juiz.

Um deles, Alberto Spies, clama: “Podeis condenar-me à morte, mas eu quero que se saiba que no Illinois oito homens foram sentenciados a morrer apenas por acreditarem no futuro bem-estar da Humanidade e por não terem perdido a fé no triunfo final da Liberdade e da Justiça. Que crime cometemos nós? Nós temos apenas explicado ao povo as condições sociais em que ele vive; temos-lhe apenas feito ver os fenómenos sociais e as circunstâncias e leis sob as quais aqueles se desenvolvem; temos provado, graças à investigação cientifica, que o sistema do salário é a causa de todas as iniquidades sociais.
Além disto, temos proclamado que o dito sistema de salário, como forma específica do desenvolvimento social, teria de dar passagem, por necessidade lógica, a formas mais elevadas de civilização; e que este sistema preparava o caminho e favorecia a fundação dum método cooperativo universal, que tal é o socialismo. Que esta ou aquela teoria, este ou aquele enunciamento de melhoria futura não eram matéria de eleição e sim necessidade histórica…
(…)
O juiz interrompe-o. Mas o próprio acusador pede-lhe que autorize Spies a continuar. E este pronuncia, então, as palavras que haviam de o condenar definitivamente:
‘Como Buckle, como Paine, como Jefferson, como Emerson e Spencer e muitos outros grandes pensadores do nosso século, eu creio que o Estado de castas e classes, o Estado onde uma classe vive a expensas de outra – ao qual chamaremos Ordem – está próximo de desaparecer; eu creio que a esta bárbara forma de organização social, com os seus roubos e o seus assassínios legais, sucederá uma sociedade livre, uma associação voluntária, se assim o preferis. A verdade crucificada em Cristo, em Giordano Bruno, em João de Huss e em Galileu, vive ainda; estes e muitos outros nos precederam no passado. Nós estamos dispostos a segui-los. E um dia há-de chegar em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as nossas vozes que hoje procurais sufocar com a morte.’
Todos os outros acusados fizeram declarações semelhantes. ‘Não é por um crime que me julgais; é pelos vossos princípios – diz Luis Lingg ao juiz. E acrescenta: ‘Podeis enforcar-me!’ Oscar Neebe, grita também: ‘ Deixai-me participar na sorte dos meus companheiros: enforcai-me com eles!’
O juiz contempla os réus. Um outro se levanta. Chama-se Adolfo Fischer. A atitude dos homens da Revolução Francesa parece exercer ainda alguma influência nestes outros homens. Fischer declara: ‘se hei-de ser enforcado pelos meus ideais, pelo meu amor à Liberdade, à Igualdade e à Fraternidade humanas, então não vejo nisso inconveniente algum. Matai-me!’
(…)
O julgamento durou vários dias e, no fim, o tribunal condenou cinco dos oito homens à morte e três a trabalhos forçados por muitos anos.
Estas sentenças levantaram uma profunda discordância universal, mesmo entre muitos daqueles que combatiam as reivindicações proletárias. E se havia sido impressionante a atitude dos acusados no tribunal, não foi menos comovente a das suas famílias, depois de serem condenados à forca. A mãe de Lingg escreve-lhe: ‘ Como sabes, eu também tenho lutado duramente para ganhar pão para ti, para a tua irmã e para mim mesma e é tão certo como neste momento me sentir com vida que, depois da tua morte, estarei tão orgulhosa de ti como estive quando vivias’. A mulher de Pearson proclama, também orgulhosamente: ‘Se depende de mim que o meu marido peça perdão, que o enforquem!’”

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O CASARIO


No casario quem mora,
canta, ri ou chora;
quem tem calor ou frio
e quem se foi embora,
já não mora no casario?

No casario quem come
ou se alimenta de fome
e tem a vida por um fio.
De quem e em que nome
se consome o casario?

No casario, por fora,
vivem a luz, por ora.
E dentro há vela ou pavio
que alumie quem lá mora
ou é negro, dentro, o casario?

Que sabemos nós de quem mora
se os olhos só vêem por fora?

domingo, 25 de novembro de 2012

FLORES DE MIM



Ai flores, cujo rescender
me colhe por mariposa,
dai-me tempo e a ver
quanto o meu voo não ousa.

Coberto de cores e flores
como anjo querubim,
mais as mágoas e dores
que brotam dentro de mim.

Voarei num golpe d’asa
sobre pétalas e poemas,
mesmo sem sair de casa
e em vez de asas ter penas.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

AMIGOS


Na foto (de 72/73), que me foi oferecida pelo meu amigo Joaquim Vicente, estão dois outros amigos: o Ambrósio Ferreira (à esquerda) e o Luis Silva.

Tenho amigos que ainda
e também amigos que já:
a uns posso dar boa-vinda;
outros já não estão cá.

O que sou, sou todos eles,
por isso sou bom e ruim:
destes um pouco, outro daqueles,
todos estão dentro de mim.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

NUBLADA VERDADE



É fácil falar do Sol, falar da Lua,
mesmo quando as nuvem prevalecem:
estão lá, a verdade é nua e crua;
dúvidas que hajam, logo desvanecem.

Difícil é saber o que se esconde
detrás duma palavra a descoberto,
o que encobre, o como e o onde,
o que quer dizer de errado ou certo.

domingo, 18 de novembro de 2012

PLÁTANO


O velho e robusto plátano cedeu enfim
a sua última folha rosada deste outono.
Cedeu a folha no triste adeus de abandono;
ficou a árvore, perjurando a morte; o fim.

Não cede a árvore pela mão da natureza
mais que as folhas consumidas, outonais:
cede ao tempo, a invernias e vendavais,
nessa luta mais não dá, mais não despreza.

Dos galhos secos, agora desfolhados,
despontarão flores e frutos renovados
e o seu esplendor será com então era:

Será de novo a sombra dos desabrigados,
exemplo de robustez e porte elogiados,
não agora: só quando voltar a primavera.

sábado, 17 de novembro de 2012

O FIM DAS DÚVIDAS



Não corre o rio de costas para o mar,
não corre. Não sopra o vento através do muro,
não sopra. Não voa o pássaro por voar,
não voa. Nada é feito sem futuro.


Não mata a fome o negro pão ganhado,
não mata. Não arde o coração do louco,
não arde. Não grita o dócil nem o acomodado,
não grita. Não grita, mas falta pouco, muito pouco!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

COMO A AZEITONA


Eu, que tenho a vida repartida
entre a campina de Idanha
e o Alentejo, sei que, como os homens,
os frutos nascem sabendo já ao que vêm.
Os mesmos tratos e a mesma luta;
os mesmos donos da terra e os mesmos
que a adoçam, amanham e a tornam fértil.
Nos braços e nas frontes correm os mesmos rios
de crescidos leitos, onde o suor
pode correr livre, de jorro de um sol a outro.
Se há diferenças? Há: como os homens, a azeitona,
em Idanha é retalhada e pisada no Alentejo,
mas em ambos os casos com o mesmo fim…


terça-feira, 13 de novembro de 2012

DIA-A-DIA



Esta alternância de equinócios e solstícios
é ciência de grande enfado:
ora o dia, mal começado, já declina para a morte;
ora se torna em modorra, extenso,
com presunções de ser também o dia que há-de vir.
Decidi por isso comprazer-me
- somente no que ao dia diz respeito –
apenas com a parte da manhã. É bastante
e condiz com a minha origem rural e simples,
habituado desde criança ao sol por relógio
e à brisa matinal para tempero do corpo.
O que sobrar pode o dia utilizar como muito bem entender,
mas não conte comigo.
Tome o dia, o dia inteiro por sua conta,
até um dia…

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A CEIA



O mais atrevido picava furtivamente
a batata cozida que era já cuidada para a próxima refeição.
- Guardado está o bocado…
No panelão de ferro escuro afundavam todas as batatas,
mais ou menos à conta, com casca,
para que o entretém do desbulho
provocasse a sensação de uma refeição farta e prolongada.
- Ficavam assim mais saborosas, era a versão familiar.
O pai contava sempre a mesma história:
que a batata não era um fruto como a castanha,
mas um tubérculo, uma raiz,
que era recente na nossa dieta habitual
e que tinha sido trazida da américa.
Isso dava a todos a impressão de um manjar exótico,
apesar do nome saber ao mesmo
que o som da palavra que lhe dava o nome.
Comiam-se com ganas de tapar todos os buracos
que o sol ou a chuva abriam algures no ventre.
A tudo isto se chamava ceia
(nada parecida com o quadro com o mesmo nome
pendurado, desde que me lembro,
por cima do aparador da sala)
a tudo isto chamávamos ceia
porque não tínhamos outro nome para lhe chamar.
Poderíamos chamar-lhe fome,
se soubéssemos o que era fartura.

sábado, 10 de novembro de 2012

OS DISTRIBUIDORES DE GÁS


Por baixo da minha casa há um concessionário de gás.
Tenho observado com frequência, cá de cima, da varanda,
a minúcia com que os distribuidores
arrumam as botijas nas carroçarias de transporte:
umas vão deitadas – as maiores – e as mais vulgares de pé.
No fim, não sobra nem falta espaço. Tudo fica perfeito,
geométrico, acomodado.
Esta azáfama faz-me lembrar os meus poemas:
como os construo e invento espaços, verso a verso,
e os ajusto até que nada sobre ou falte a cada estrofe.
Por fim, debandam para aquecer lugares e sonhos,
como fazem os distribuidores das botijas.
Em ambos os casos, no regresso já nada é igual:
as botijas vêm surradas e vazias
e os poemas inchados como balões de gás.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ALBERTO CAEIRO


Ontem encontrei Alberto Caeiro.
Tinha um ar comisero, pesado,
e os olhos ardiam-lhe como lume.
Lia Cesário Verde e as lágrimas
corriam-lhe como a uma criança.
Arrastava os versos do mesmo modo
como se carregam os últimos cestos
da vindima, onde Cesário
tossia do princípio ao fim.
Não reparou em mim e ainda bem:
não iria dizer-me nada que eu não soubesse já;
nem as suas lágrimas
seriam mais verdadeiras do que os meus versos.



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

POESIA DOS SENTIDOS - O SEXTO SENTIDO




homem p
homem pre
homem preve
homem preveni
homem prevenido
siod rop elav

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O TACTO E O PALADAR

Pablo Picasso


É de púrpura e fogo
o teu olhar
quando me apertas com força
o suor do ventre
fresco
e saboroso
como goles de vinho branco

- enorme impressão digital
que denuncia
verso a verso
a nossa poesia

sábado, 3 de novembro de 2012

POESIA DOS SENTIDOS - O OLFACTO


Não havia cheiros como os da casa da minha avó.
Ah, se eu pudesse descreve-los,
reproduzi-los com palavras perfumadas!
Subia as escadas
com aromas carregados de maresias recentes,
misturados com o perfume do irrepreensível encerado,
e sabia, pela corrente de ar vinda da cozinha,
que uma grande fatia de pão caseiro,
com queijo de cabra, me estaria reservada para a merenda.
Cada recanto tinha o seu próprio odor,
por isso reconhecia de olhos fechados
a geografia de toda a casa
e do meloso aroma das mãos que me afagavam o rosto,
dos lábios que me beijavam,
do regaço que me acolhia como ninguém.



sexta-feira, 2 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O OUVIDO


Envelhecemos como as pedras
e o primeiro sinal é não ouvir; ouvir mal.

Treinámos a vida inteira.
Fomos selectivos , usamos filtros.

Mas agora não. É o sentido
que definha e morre o bicho do ouvido.

Às pessoas pedimos que repitam
e o tom da música podemos subi-lo.

Mas o chilrear dos pássaros
e o assobio da brisa nos ramos da árvores
não há como tê-los decorado:
é tarde agora para os aprender
a quem nunca lhes dedicou uma só ária.



quinta-feira, 1 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O OLHAR


Olhássemos nós o mundo
das varandas dos teus olhos
e então verias.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

FÓRA DAQUI!



Estes, que de espontânea geração
se implantaram de unhas afiadas,
sem pátria, rosto ou nobre condição,
erguem barreiras, intransponíveis paliçadas
a mando de medonhas divindades
e novíssimos coios emergentes.
Se for o caso, faremos as nossas barricadas
e mandaremos até tocar trindades,
armados de mil razões e alma até aos dentes.

Acabou o tempo, cães imundos!
não há mais lugar para indulgentes elogios!
Enquanto é tempo oiçam nos gritos profundos,
o repúdio, as vais de revolta, os assobios,
que não queremos saber mais de novidades
da morte que em vós nos vai matando
ou impostos falsamente vitais e urgentes.
Nós somos daqui em todas as idades,
feridos, é certo, de quando em quando.
Esparta não tinha rampas para deficientes.

domingo, 28 de outubro de 2012

FALSO POEMA SOBRE A CHUVA


Pobres nuvens, estas que choram
compulsivamente sobre as ruas,
já de si cobertas de lágrimas.

Pobres nuvens desfeitas
em lágrimas desfeitas.

Encharcadas até aos ossos
de água e sonhos
que escorrem na valeta, por esta ordem,
e pela ordem inversa
quando o ofício é osso duro de roer.

A verdade é que as nuvens não cessam de chorar
as lágrimas que já não temos
por tudo o que nos molha
e que afinal é chuva sem poesia alguma.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

PARTIR DO ZERO



O sol não aquece
o frio não gela
o rio não corre
as estrelas não brilham
as aves não voam
o fogo não arde
e o lume das nossas mãos
tem chama que não queima
os frutos não amadurecem
os sinos não dobram
as horas não passam
as bocas não falam
o vento não sopra
a carne não sangra
a fome não passa
e esta estrada não leva a lado nenhum
as palavras não gritam
não gritam os homens

o melhor é começar de novo:
partiremos do zero
p’ra ver o que isto dá.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

EXPECTATIVAS


Bolas não numeradas
não são do totoloto:
-bolas! que bolas bastardas
saíram ao gafanhoto.

Zero é coisa nenhuma,
jackpot é muita sorte.
Ele vê-se cada uma
nesta vida, que é de morte.

Da sorte, que eu conheça,
a fazer fé no gafanhoto,
só algumas dores de cabeça
e sonhos de totoloto.

Mas o tema não termina
com mais bicho, menos bicho,
que esta vida não é sina:
a passos? Não, isso é lixo!

domingo, 21 de outubro de 2012

NO CORAÇÃO DAS HORAS



Na Torre, onde faz tempo,
as horas batem por fora,
há um relógio por dentro,
que faz o tempo hora a hora.

Marca as horas boas e más
com preceito e exactidão
de frente, de lado e de trás,
faz das tripas coração.

Marca a vida em compassos,
em esperas e pontualidade,
retalha o tempo em pedaços,
fingindo não ter idade.

A idade (provado assédio)
é o que o relógio recorda
e não resta outro remédio,
que paciência… e dar-lhe corda.

sábado, 20 de outubro de 2012

PERSPECTIVA


Não é por pintá-lo que há-de
ser perfeito um qualquer dia,
muito menos p’la obliquidade
do sol é meio-dia.

Não é o mate da aguarela
que ilude a cor do outeiro,
nem a subtileza revela
possibilidade de aguaceiro.

O que há para ver é a casa,
as flores, o mundo perfeito.
Assim a gente se compraza
e bom proveito.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SEI DE UM BARCO



Sei de um bote, um barco ou um navio
repleto de soldados e marinheiros,
e de outros, que por destino ou extravio,
não foram muito além dos areeiros.

Sei de uma jangada de vela panda,
que os ventos enchem de areia e sal,
aparentando navegar, mas já não anda
e se dá pelo nome de Portugal.

Foi um pássaro que me disse, inquieto,
que a estibordo mete água, afunda
sem remédio, como boia moribunda,

sem se saber já se foi mal do arquitecto
ou se de outros infortúnios foi objecto
para tal sina e desgraça tão profunda.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A MINHA JANELA

Remeteram-me há dias por e-mail esta graciosa fotografia. Esse é o motivo que me leva a repor o poema "A Minha Janela", publicado há já algum tempo aqui no Corpo de Poema.


A minha janela fechada
tem todo o mundo lá dentro,
que os meus olhos e o tempo
guardam por tudo e por nada.

Se aberta de par em par,
a janela da minha casa,
dá-me alento e o golpe d’asa
que preciso para voar.

Vejo o mundo da janela
tudo o que mexe na rua
vejo o sol e vejo a lua
só de fora a vejo a ela



domingo, 14 de outubro de 2012

A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS


A ravina do olhar com lágrimas,
essa mesma, a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo;
a ravina para onde empurro
tudo o que não quero ver ou sentir,
incluindo as lágrimas
e demais subtilezas da alma que há em mim
é onde guardo as pequenas coisas.

Há dias salvei de morte certa
o que restava duma folha branca
separada do bloco de apontamentos.
Escrevi um recado breve
e pu-la bem à vista de quem o precisasse.
Foi alvo de todas as atenções
durante o período activo de validade.
Depois afundou-se na ravina
do olhar com lágrimas, essa mesma,
a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo.