Pois aqui estou perante os meus amigos, confessando que, agora, acabei de ler a Volta ao Mundo de Ferreira de Castro, trinta e oito anos após a morte do autor, que datou a conclusão desta sua extraordinária obra em Agosto de 1944, edição da Editora Guimarães & Cª.
Trata-se de um dos mais ilustres escritores portugueses do século passado. Um observador atento da realidade envolvente, acutilante, capaz de nos fazer viver o que descreve e um humanista sincero como cidadão e como escritor.
Talvez não tivesse a mesma emoção se não vivêssemos nós, nos dias que correm, as vicissitudes nefastas do apertar da malha do capital financeiro internacional que, mercê do executivo fantoche que nos governa, nos obriga a inúmeras manifestações de massas de grandes proporções, à recente greve geral de ímpar amplitude e aos consequentes embates com as chamadas “forças da ordem”, sempre inocentadas nestes confrontos…
Abro por isso uma excepção em Corpo de Poema para transcrever um trecho da obra ímpar de Ferreira de Castro, aquando da sua passagem por Chicago e nos lembra e relata a origem do 1º de Maio.
Talvez pela actualidade que o tema, infelizmente, adquire nos dias que passam, aqui vos deixo sem mais comentários, o texto referido:
…”Ora, no dia 1º. De Maio de 1886, reunira-se aqui, em Chicago, um congresso de operários. As ideias anarquistas estavam, então muito em voga. Grande percentagem, senão a maioria do proletariado universal, tendiam para o anarquismo e anarquistas ou anarquizantes eram os intelectuais que pela causa do proletariado se interessavam. Os congressistas de Chicago militavam também na mesma doutrina e pretendiam apressar a conquista daquele horário (oito horas diárias) – um horário menos violento, menos desumano do que o existente até ali. A polícia de Chicago entrou, porém, no edifício e, como quase sempre a polícia intervém em reuniões de operários, ao sair deixava, atrás dela, numerosos feridos, numerosos mutilados, gritos de desespero e de dor.
Para protestar contra as violências de que haviam sido vítimas, os operários voltaram a reunir-se três dias depois, em comício ao ar livre, numa praça desta cidade. A polícia voltou, porém, a intervir – e fê-lo com a mesma ferocidade de três dias antes. Mas quando ela espadeirava à esquerda e à direita, abrindo cabeças aqui, decepando braços acolá, trespassando peitos mais além, no meio do tumulto imenso, no meio dos gritos e dos gemidos, uma bomba explodiu e dez polícias morreram.
Jamais se soube, ao certo, quem a bomba atirou; oitenta e tantos homens foram, porém, imediatamente mortos como represália e oito foram presos e julgados como responsáveis pelo lançamento do explosivo.
Para um juiz desse tempo, anarquismo e bombas eram sinónimos – era tudo a mesma coisa. Sabia-se, assim, de antemão que os presos seriam condenados à morte ou a trabalhos perpétuos.
Uma vaga de idealismo impelia, contudo, numerosos proletários de todos os países até ao supremo sacrifício. E passou-se, então, aqui, algo extraordinário, que havia de emocionar o Mundo inteiro
(…)
Os oito homens, que alinhavam entre os operários mais cultos de Chicago, apresentaram-se no tribunal não como acusados, mas como acusadores. De longas cabeleiras românticas, como era de bom uso nessa época, eles tomaram, do princípio ao fim do julgamento, atitudes de protagonistas de poema épico. Eles sabiam que, com este procedimento, agravavam a sua situação e atraiam mesmo a sentença de morte que pairava sobre as suas cabeças; todos eles, porém, embora inocentes, preferiam manter-se à altura do papel que as circunstâncias lhes haviam criado do que mostrar qualquer transigência perante o juiz.
Um deles, Alberto Spies, clama: “Podeis condenar-me à morte, mas eu quero que se saiba que no Illinois oito homens foram sentenciados a morrer apenas por acreditarem no futuro bem-estar da Humanidade e por não terem perdido a fé no triunfo final da Liberdade e da Justiça. Que crime cometemos nós? Nós temos apenas explicado ao povo as condições sociais em que ele vive; temos-lhe apenas feito ver os fenómenos sociais e as circunstâncias e leis sob as quais aqueles se desenvolvem; temos provado, graças à investigação cientifica, que o sistema do salário é a causa de todas as iniquidades sociais.
Além disto, temos proclamado que o dito sistema de salário, como forma específica do desenvolvimento social, teria de dar passagem, por necessidade lógica, a formas mais elevadas de civilização; e que este sistema preparava o caminho e favorecia a fundação dum método cooperativo universal, que tal é o socialismo. Que esta ou aquela teoria, este ou aquele enunciamento de melhoria futura não eram matéria de eleição e sim necessidade histórica…
(…)
O juiz interrompe-o. Mas o próprio acusador pede-lhe que autorize Spies a continuar. E este pronuncia, então, as palavras que haviam de o condenar definitivamente:
‘Como Buckle, como Paine, como Jefferson, como Emerson e Spencer e muitos outros grandes pensadores do nosso século, eu creio que o Estado de castas e classes, o Estado onde uma classe vive a expensas de outra – ao qual chamaremos Ordem – está próximo de desaparecer; eu creio que a esta bárbara forma de organização social, com os seus roubos e o seus assassínios legais, sucederá uma sociedade livre, uma associação voluntária, se assim o preferis. A verdade crucificada em Cristo, em Giordano Bruno, em João de Huss e em Galileu, vive ainda; estes e muitos outros nos precederam no passado. Nós estamos dispostos a segui-los. E um dia há-de chegar em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as nossas vozes que hoje procurais sufocar com a morte.’
Todos os outros acusados fizeram declarações semelhantes. ‘Não é por um crime que me julgais; é pelos vossos princípios – diz Luis Lingg ao juiz. E acrescenta: ‘Podeis enforcar-me!’ Oscar Neebe, grita também: ‘ Deixai-me participar na sorte dos meus companheiros: enforcai-me com eles!’
O juiz contempla os réus. Um outro se levanta. Chama-se Adolfo Fischer. A atitude dos homens da Revolução Francesa parece exercer ainda alguma influência nestes outros homens. Fischer declara: ‘se hei-de ser enforcado pelos meus ideais, pelo meu amor à Liberdade, à Igualdade e à Fraternidade humanas, então não vejo nisso inconveniente algum. Matai-me!’
(…)
O julgamento durou vários dias e, no fim, o tribunal condenou cinco dos oito homens à morte e três a trabalhos forçados por muitos anos.
Estas sentenças levantaram uma profunda discordância universal, mesmo entre muitos daqueles que combatiam as reivindicações proletárias. E se havia sido impressionante a atitude dos acusados no tribunal, não foi menos comovente a das suas famílias, depois de serem condenados à forca. A mãe de Lingg escreve-lhe: ‘ Como sabes, eu também tenho lutado duramente para ganhar pão para ti, para a tua irmã e para mim mesma e é tão certo como neste momento me sentir com vida que, depois da tua morte, estarei tão orgulhosa de ti como estive quando vivias’. A mulher de Pearson proclama, também orgulhosamente: ‘Se depende de mim que o meu marido peça perdão, que o enforquem!’”