Precisamos às vezes de uma espécie de catarse, que nos faça repensar o que fizemos, como o fizemos e como sentimos e vivemos todas essas acções passadas. O que nos trouxe até aqui e porque escolhemos este caminho e não outro? O que é o que fazemos e que destinatários tem? Qual a sua utilidade? Que sentimentos (evidentes, encobertos ou metafóricos) nos moveram e nos movem ainda? Finalmente, que mágoas ou alegrias nos impelem e nos fazem, de algum modo, seres activos e intervenientes no mundo que nos rodeia. Falo da poesia, evidentemente.
Andei há dias de volta dos papéis antigos e encontrei um texto de 1976, que quero partilhar agora. Tomem lá: PROSADA POESIA (dois pontos)
A montra dedada do café é, por enquanto, o oceano possível, o percurso admitido pelas nep’s. Tudo seria mais fácil se temporariamente assumisse a anarquia dos insectos ou mais ainda a ultra-anarquia dos insecticidas. Mas não. E ainda bem que inventaram o vidro de cinco milímetros, apesar das dedadas nojentas de gordura. Agora escorrem mulheres lentas e inexplicavelmente impessoais. Rabisquei o primeiro verso. Redondo. É a terceira vez que recomeço. Número de desistências, idem. Ah, as persianas metálicas, o pautado rigoroso sobre a montra dedada do café, deixa-as ondular, quase líquidas, como rabos de abelha má. Afinal são prostitutas, comentam ao meu lado. Escanzeladas e negras como andorinhas mortas por uma qualquer trovoada mas, porventura, brusca. Trepadeiras pingentes de fim de verão. Sinto quase gelo nos olhos. Provavelmente dramatizo: dez tostões de poesia para a obra piedosa das ruas sem montras de café, dez tostõezinhos, pelas almas… Curvado até à vertigem, o poeta agradece e retira-se. Nervoso.
Pisquei às tuas coxas ondulantes, de um veludo malicioso, sob a saia de seda em carne viva. Imagina que me sugeriste uma boa dose de ideias, por certo lugares comuns, para al/face e verso lírico do dia. Dose reforçada foi quando deixaste de ser silhueta de serpente fácil e me tocaste com a sobra sensualmente supérflua das nádegas rijas, perturbadora revelação dum sexo neutro. Aí o poema tomava já um aspecto aflitivo: a ejaculação precoce de verso sobre verso agonizava. Tentei depois um golpe de rins inesperado: a apoteose do verso rebentaria a qualquer instante. Mas foi no derradeiro percurso, no escasso metro e sessenta e cinco (dos teus cabelos soltos, às pontas aguçadas dos calcanhares doridos) que tudo se perdeu irremediavelmente: nos saltinhos finos de insuportável cegonha, uma casca de laranja ficara presa, trespassada e suja. Perdi o fôlego.
Faltava ainda a cor. A tua cor. A maquilhagem que me solicita o beijo. Me torna a língua um potro solto e órfão, desenhando círculos fictícios, convulsos, de saliva conseguida até ao grito. E nada mais que uma imperceptível mímica, uma enorme mancha vermelha sobre os olhos e grande, grande capacidade para o silêncio.
Registo memórias magoadas como tumores malignos, expostos, mortais, oh imperdoável contabilidade. Felizmente, tudo fica medido, pesado, quantificado em embalagens populares, familiares e de luxo. A poesia tem assim fortes possibilidades no mercado. Agradável nos rótulos, cintas e etiquetas de todos os produtos de higiene mental.
A vida tem artifícios de sol-posto…
- Então?! Com a vida não se brinca…
Canalhas!