quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

AS MINHAS MÃOS


Tenho uma mão que tudo sabe,
destra por natureza e feição
e outra, igual, onde tudo cabe,
do lado do coração.

Mesmo que a ideia desabe,
não perdem nunca a condição:
uma espera que a outra acabe,
seja qual for a função.

E por muito que me gabe,
nunca faltarei à razão,
dizendo que ao que uma não sabe
a outra lhe dá a mão.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O TRAJE


Dentro da lapela há uma tela
e em tê-la se entretém  a vida,
como no mar alto içar a vela
esperar do vento o invento da saída.

De facto, o fato é um afecto
ou o tacto de um braço nu.
Assim o branco é brando no aspecto,
quando brinda em lençol de pano cru.

Por fim o toque do laço
e para que o lenço realce, ao centro
o lance alongado do traço
e a legenda: frágil, leva gente dentro.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A VOLTA DAS ANDORINHAS


Chegaram em força as andorinhas. Vi-as hoje
com estes dois que a terra me há-de comer…
Se são saudades suas ou se o tempo lhes foge,
isso não sei: sei que já se podem ver.

Ver voar em desatino, ora abaixo, ora acima,
no céu que as hospeda, limpo e prazenteiro
e a todos faz esquecer as variações do clima;
acreditar no encalmado verão já em janeiro.

Nem quis admitir mas eram de facto
reais as andorinhas, (brancas por baixo; pretas em cima)
e nada de fantasias, de artesanato:
rai’s partam o tempo, rai’s partam as alterações do clima!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

DRAGÃO VERMELHO


Dragão vermelho é bicho morto,
nem sei como tal se classifica:
pois se o dragão é símbolo do Porto,
vermelho é a cor do meu Benfica.

Mas em fase terminal da bicharada,
um híbrido é bom medicamento.
É assim uma espécie de salada
sem sal ou qualquer outro condimento.

Ah, bem, é fita, é sétima arte,
não cospe fogo e porta-se como gente.
Nesse caso fica bem em toda a parte,
Desde que não surja de repente…

Porém, lembra-me festa oriental,
símbolo de doença rara ou peste.
Se o dito me aparecer no quintal,
dou um grito: “Olga, que bicho é este?!”

sábado, 19 de dezembro de 2015

ÁRVORE DE NATAL


A ventania de ontem à noite
tombou uma azinheira centenária, em frente da minha casa.
O fôlego da tempestade,
em contraste com o seu já débil alento, 
foi superior às suas forças. Respirava ainda quando a vi:
arrastando a ramagem
e os escassos frutos no chão molhado,
suplicava o impossível conserto da sua coluna vertebral.
Não chorava – tanto quanto eu pudesse perceber – suplicava
a mão, o gesto ou apenas o olhar
a quem sempre a julgou eterna e eterna haveria ser
depois de nós e ainda dos que viessem.
Com um dos ramos tocou-me ao de leve.
Pareceu-me uma carícia, um aceno
ou o desejo de lançar nova raiz,
agora que a morte tornava inevitável a remoção.
Aceitei o ramo como presente.
A velha azinheira ofereceu-me a sua eternidade.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

CORPOS D´ÁGUA


Deleitado, o teu corpo geme, lambe,
humedece por fim,
açude em seu derrame,
decalca as águas em mim.

Os lábios ciciam fome e sede,
carne, água de beber,
o desejo que o teu corpo pede;
o rio que em mim vai nascer.

Os teus olhos choram de alegria e mimo,
em tua pele cada poro freme 
e é nesse lago que navego e rimo
amor, água de rosas e creme.

domingo, 13 de dezembro de 2015

INCONSEQUENTE


                                              
Só com o ver o trilho, a terra batida,
já o meu olhar progride muito além
do que ao ser humano é permitido,
que é caminhar quando o olhar vem

ao meu encontro e o caminho feito.
Só me abalança o estar presente
longe de estar perto para o efeito
- inexplicavelmente ausente –

se o resultado for onde agora estou
e não onde me leva este caminhar.
Melhor é não ter para onde ir ou
seguir o rasto vagabundo do olhar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O ÚLTIMO MILHO


pardais das pedras
ou de quem os prende com perdas
pardais de pronto confronto
com as migalhas
pardais de esperas e de ais
ideais quimeras
são demoras de pardais

a migalha esconde-se na pedra
pródiga na  fenda que a consome
e não medra
é por isso que saltam os pardais
é uma dança de fome
deus não dorme é conforme
amanhã há mais

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

OS PRIMEIROS DESAFIOS


Naquele tempo (evoco António Jacinto, poeta angolano)
não subtraiamos; apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo: repartíamos, como então nos era modo de ser.
Jogávamos contra e a favor dos nossos, partilhávamos a bola
como coisa íntima e coleciva. Não havia adversários:
todos eram companheiros no jogo, nas mazelas e em tudo mais,
excepto nos golos, que eram de cada um…
Naquele tempo não subtraíamos, nem tal nos ocorria.
O tempo era de somar, de multiplicar para os mais ansiosos…

Não se pensava nas classes que haveriam de surgir
entre nós com o passar dos anos: os que teriam meios
e os que haveriam de sujeitar-se, vendendo a sua força de trabalho.
Julgávamo-nos como iguais e assim fomos sendo
até nos perdermos de vista (também se diz crescer)
e nos perdermos num mundo dividido, que não era então
da nossas contas, porque apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo, mas eramos incapazes de subtrair o que quer que fosse
à alegria de ali estarmos e partilhar o (nosso) mundo.

As corridas sem freio e os remates longe da baliza
eram só intenções, só isso, nada de ultrapassar quem quer que fosse
e, no entanto, ganhávamos e perdíamos (às vezes empatávamos…)
com o mesmo entusiasmo e com os mesmos abraços
de vencidos e vencedores de um jogo que não era mais que um jogo,
mais que um tempo em que todos nos juntávamos
e nos comprazia estarmos, naquele tempo em que não subtraíamos;
apenas somávamos e multiplicávamos e dividíamos tudo,
tal como o desejo de sermos homens e ter futuro.