Não vou dizer-te nada que não saibas
ou que não queiras.
Não tenho atrevimento para te inquietar
e construir contigo uma realidade que não vês.
Não vou dizer-te absolutamente nada,
por ser escusado e não faltar quem te minta.
Não vou dizer-te nada que não saibas
ou que não queiras.
Não tenho atrevimento para te inquietar
e construir contigo uma realidade que não vês.
Não vou dizer-te absolutamente nada,
por ser escusado e não faltar quem te minta.
Às
vezes chove e eu vejo essa água molhar-te,
impiedosa.
Na cidade é assim: a chuva molha
cruelmente
as pessoas, desfigura-as
até
se confundirem com a desumana chuva.
Aqui,
na horta que frutifica na minha memória,
é
uma bênção. Podia chover o ano inteiro,
que
seria sempre bem-vinda a água. E mais não digo,
enquanto
não estiver completamente enxuto.
Ela lá e ele, do lado de cá,
disse olá.
Fez eco lá; ouviu ela acolá.
É boa, olá lá.
O constant’ hino
tocado sem destino
troca o tino
do cretino, a’rmar ao fino:
(“lavamos catandirrindo
levados, levados, sim…”)
Dirão na morte a perda,
oh morte inesperada!
De mim ninguém m’herda
Nada!
Fogo-fátuo
é fumo consumido
- a labareda morta.
Um clarão, nada
mais que um lampejo
extinguindo-se.
Chama efémera
chama-me e
arde-me, ateia-me.
Cinzento é tudo
o que arde dentro
por dentro.
Que há de novo nesta quadra
de requentado néon intermitente?
Um vaivém de gente
e é costume ser mais nada.
Neste exórdio, que afinal deu igreja,
o negócio permanece intacto:
todos iguais mas, de facto,
há sempre carvão e carqueja.
Uns, castanha assada; outros, só o fumo;
fitas, laços, vitrinas de desejo.
- A avó manda-te um beijo.
Porta-aviões do consumo.
Um dia destes enfeito-me de azevinho,
bagas vermelhas em cima e aos pés caruma.
Vestido assim, (a ver se adivinho):
humana árvore de Natal ou coisa nenhuma.
De azeviche não, (ai a língua portuguesa!)
à maneira sóbria das damas antigas,
fazendo sinal da cruz quando se sentavam à mesa
e no decote exibiam um atado de figas.
Visto-me assim de vermelhos frutos,
que da natureza sou e de vermelhos gosto
e sem vaidade digo: são gostos mútuos;
de hipocrisias basta, é nisso que eu aposto.
Uma gota que seja
e nela a água toda,
que molhe e não se veja
vai pingando, incomoda.
Pingue, pingue, a gota
vai alagando o chão
uma a uma não se nota
e mata e mata ou não.
Não mata a gota, cai,
alaga, se não mata mói
vai e vem, vem e vai
pingue, pingue, dói.
Já é mar faz de conta,
malvada seja, a gota,
então não é afronta
que mal se vê, mal se nota?
O candeeiro da cidade
(o mais poupado da rua)
resolveu gastar a lua
em vez de electricidade.
havendo necessidade
e sempre que vê a lua
logo lhe chama sua,
mordomo da claridade.
Mas um dia, por maldade,
uma nuvem cobriu a lua,
enegrecendo a rua,
o candeeiro e a cidade.
Não sei se isto é verdade;
quem mo contou foi a lua.
Era um rio,
um rio, que era todos os rios, de águas vivas
enfileiradas ao longo do caminho.
Às vezes um barco fazendo pela vida.
Nas margens, os salgueiros
inclinavam-se; faziam vénia e aproveitavam
para refrescar na água corrente os ramos mais afoitos.
O rio ia passando
tinha mais caminho, mais água à sua espera.
Algum tempo depois, nesse ou noutro dia,
o rio teria o fim anunciado, um mar imenso
onde não haveria mais falas sobre o rio
e aquela imensidão de água não contaria
senão para morrer dentro de si com o rio na barriga.
O que me mentem as tuas mãos, quando acenas?
Sei lá se te despedes com ganas ou me dizes adeus,
com ares de exuberância imitada ou apenas
fátua negaça, se me insinuas vem ou vai com deus.
Tenho dúvidas, tenho por traquejo muita dificuldade
em saber se realmente me honras e me tens em alta
ou se apenas é comum em ti dar azo à vulgaridade
de adeusar quem fica e adejar a quem já não te faz falta.
Cobro o mesmo: sou amigo de quem sempre fui;
não precisas de fingir, nem te exijo esse empenho
e não tenho pretensões ao que do nada nasce ou flui,
mas apenas do que de amizade por ti ainda tenho.
Era
a tarde do dia. Envelhecida
e
gasta pelo Sol. De preguiça e sono.
Veio
voando, caindo a folha amarelecida,
entre
mim e o Outono.
Aos
meus pés, a natureza morta
acenava,
com serenidade, a despedida:
-
Hoje bateu-me à porta
uma
experimentada prova de vida.
Trazia
o pó do caminho
(viver
cria sempre esta poeira)
e
aquietou-se ali, arrastando-se devagarinho,
despojada
do verde-vida, uma vida inteira.
De vez em quando
cai-nos uma mosca na sopa,
que nós vamos levando:
- Se retirar a mosca ninguém topa.
Nova colherada de sabor inalterado,
não reclamamos à copa
para não aborrecer o empregado
e comemos a sopa.
Ma virá o dia em que a sopa sem mosca
está insonsa e está fria
e então vem a revolta tosca:
- Assim nem com mosca comia!
Vou na água dos rios,
nas voltas que os rios dão;
vou nas águas,
de aluvião.
Por vezes as águas sossegam
chapinham mansas na margem
vou com elas
sem destino e sem portagem.
Vou com as águas de Março;
com as de agora,
de Outono, e todas as águas que correm:
toda a água corre, toda a água chora.
Na levada é que me entendo,
sem barco nem jangada,
vou correndo, vou correndo,
sem pressa de chegada.
saberei
tudo o que ficou para trás
e
de nada farei queixas.
Batam
palmas, sorriam e finjam que são eternos.
Eu
já não terei essa prorrogativa.
Quando
eu morrer
esqueçam
o bastante para que a minha morte
não
vos seja perturbadora, porque se o for
será
a vossa consciência; a minha estará tranquila.
Comam,
bebam e dancem: a vida estará do vosso lado
e
se isso vos der prazer, a mim não fará diferença.
Pelo
que tenho ouvido, ninguém me irá dar conta
se
é alegria ou tristeza o que vos vai na alma.
Quando
eu morrer
não
pensem muito no assunto:
“mal
de quem vai e mal de quem cá fica”
-
isto não vai ajudar em nada…
Mantenham
a esperança de que tudo vai melhorar.
Mas
lutem por isso, é essencial!
Quando
eu morrer
não
acharão qualquer diferença no que vos é dado para viver:
os
ursos polares continuarão a ter focas para a sua dieta
e
o vosso talher permanecerá no lugar habitual;
a
lua dará as mesmas voltas, apesar do cansaço evidente,
e
ser-vos-á permitido fotografar a lua cheia como sempre.
Quando
eu morrer
será
tudo igual ao que hoje achamos diferente de um dia para o outro.
Ah, que sorte: hoje há deuses lá em cima
sedentos de versos, dormentes de sono!
Vou fazer-lhes pontaria com rima
e acertar-lhes em cheio no buraco do ozono.
Podia ser em lugar alabastrino, como a testa,
mas é pecado, além da enviesada geografia:
não os quero mortos nem o fim da festa,
quero apenas treinar a pontaria.
Qualquer deus é grande, maior que tudo,
de forma que vivem longe em lugar além…
A seu modo poliglotas, estilo surdo-mudo,
e assim ditam o pecado, o mal e o bem.
A seus ministros é pesado o fardo alombado:
abençoam, excomungam, conforme as escrituras,
alteram as combinas, corrigem o pecado
e determinam a morte e as vidas futuras.
Eu vou falar com um deus um dia destes
e dizer-lhe cara-a-cara, muito abertamente:
“mas que mundo é este que concebestes
onde só vós viveis sem leis eternamente?”
Cá dentro de casa
nada me faz mal,
calor em brasa
ou brisa outonal.
Se houver vendaval,
chuva persistente,
ficam no quintal:
cá dentro só gente.
Amigos, quero dizer,
de boa companhia…
Calha às vezes não ser
mas fica pra outro dia.
Cá dentro de casa
é como vos digo:
um dia, um golpe d’asa,
outro dia a sós comigo.
Sombras mais adiante e o tempo a amolecer
à nossa frente. Brando, o Sol morre
e todo o mundo desaba ao entardecer,
esse mundo que não pára e corre, corre…
Seguem-no os olhos que avistam o horizonte,
edificando um mundo novo mais além;
no limite, o olhar vai construindo uma ponte;
um caminho do que foi para o que lá vem.
A
flor leva apenas um laço,
eu
mesmo faço;
é
para oferecer. Ou pô-la na sala
para
o que der e vier.
Ponha
na conta, vou levá-la.
Ficarei
com ela, se a merecer.
Solitários,
não tem?
Só,
a condizer, ficava lá bem
junto
à janela
para
que o sol lhe dê.
É
isso, talvez fique com ela
e
será dádiva para quem a vê.
Confia em mim – disse o mar –
eu protejo-te, avança…
(ele, que não é flor de se cheirar
nem amigo de confiança)
Contudo, tem charme e mistério,
ousa matar sem piedade:
tanto pode zangar-se a sério
como depois ser bondade.
É assim que o mar ensaia
ondas e marés em vaivém,
pelo menos visto da praia
é tudo o que o mar tem.
Olha lá, ligeiro irmão,
que pressa a tua, onde vais?
Trocas a fome pelo refrão:
o primeiro milho é dos pardais.
E o segundo e o terceiro,
se à vez forem todos hoje
quebra-se o anexim embusteiro:
devagar se vai ao longe.
Que o capricho ou fatalidade,
a ventura não te deserde,
porque também manda a verdade:
quem tudo quer tudo perde.
Quando
o sol arrefece,
a
modos que entristece
em
arrepiante glacê.
Apenas
ri quando aquece
ou
porque lhe apetece
sem
saber bem porquê.
Um
ror de tempo enroupado,
sei
lá em que vergonhas,
não
sei se dorme, se sonha,
se
o céu o traz ocupado
ou
fica envergonhado
por
ter chegado atrasado
à
partida das cegonhas.
Este
sol habituado
ao
palco diurno do fado,
que
nem por um dia se acoite,
se
bem que triste ou magoado,
e
mesmo se estiver cansado
nunca
saiba o que é a noite.
Não era afinal de ouro
nem possuía riqueza,
e fosse embora tesouro
era-o por singela beleza.
Amarelo-torrado, canário,
tudo lhe ficava a matar;
profissional do canto, operário
de antes morrer que cantar.
Morreu ocre e mudo,
escravo do tudo ou nada,
sem liberdade e, contudo,
numa gaiola dourada.
A tentação do aparador ainda hoje persiste:
a campainha do galheteiro era irresistível
e como ouvir aquele trim-trim de bicicleta
sem que a minha avó desse por isso?
A missão era ingrata, impossível,
Excepto aos meus ímpetos de menino…
De um lado do guarda-loiça havia copos e chávenas,
que só de tempos em tempos tinham serventia,
mas do outro estava o galheteiro e a sedutora campainha
exposta à imaginação de como tocá-la e ouvi-la
sem que os demais dessem conta.
Este princípio de vida permaneceu até hoje:
como fazer o impossível, como?
E o impossível ali, a dois passos, guardado no aparador.
Há cegonhas que já não se dão ao trabalho
das migrações
aqui têm casa, que vão ajeitando galho a galho
durante gerações.
Por cá têm vida estável e habitação social,
salvo eventual revés,
aqui vivem e morrem de morte natural
e são elas que trazem os bebés.
Faz parte da paisagem permanente,
este príncipe das nuvens, voador:
plana, compete com o céu diariamente,
é a gaivota do interior.
Um prolapso do sol
um pedaço de sal
uma côdea de pão mole
um percalço ocidental
de escabeche um carapau
para uma fome futura
no fundo não é bom nem mau
mas dura dura dura
um passo de caracol
menos mal menos mal
um peixe no anzol
quanto é que isto vale?
Vitrúvio
queixa-se de novo:
-
Que sina esta! De mim ninguém tem pena.
uma
vida em quarentena,
oh
redimensionado povo!
E
a lamúria continua:
-
Tirem medidas. Façam dieta,
todo
aquele que arquitecta
uma
vida ideal e saudavelmente nua.
Mil
jejuns é a receita,
comer
e beber também mata
e
ponham-se no meu lugar, em espargata,
é
uma quarentena perfeita,
Nada
não existe por nada ser,
que
sendo nada, algo tem,
alguma
coisa tem de acontecer
para
ser nada, de onde vem?
Nada
é o que não tem nome
e
morre antes de nascer;
é
o mesmo que morrer de fome
sem
ter vontade de comer.
Ou
seja, é conversa fiada,
quando
nada há para contar
e
então alguma coisa é nada,
para
tanto dar que falar.
O
tempo que leva isto tudo
sem
encontrar substância
é
porque o nada absoluto,
mais
que tudo é abundância.
O ofício de poeta tem que se lhe diga…
Matéria-prima em ruptura permanente
e, pior ainda, o que mais intriga
é que todo o verso se crê urgente.
O tecido é frágil, fino, quase puído,
junta palavras bailarinas numa dança
e que por fim se transforma em vestido,
todo enredado em si, como uma trança.
Não tem prova, se for a gosto, assentar bem,
e a sobranceira figura logo ali se retrate
com o aprumo mais exacto que ela tem,
o poeta não passa de um erudito alfaiate.
As nuvens são o sonho de voar;
deixamos que nos seduzam
e caminhamos como se tivéssemos asas.
Não temos asas; dizem-nos que não temos,
mas o nosso voo é igual ao dos pássaros,
conforme a imaginação.
O casario é extenso
e nunca o mundo que sonhámos.
É admirável o mundo como o sentimos, não como o vemos.
Informação,
a que for certeira
digo,
conforme a acta, que enforma
e
é esse pormenor subtil que torna
a
notícia verdadeira.
A
notícia é o rufo do tambor
explico
melhor: uma verdade contrafeita
escrita
por gente eleita
seja
lá ela o que for.
Serve-se
fria, a jeito
e
quem julgar que enforma é erro de ortografia,
fica
na concha e se fia,
mude
de jornal, com efeito.
Que
tenha um bom dia e bom proveito.
Água nascente
na concha da minha mão,
fresca e pura como o amor que a segura por instantes.
A pouca distância, já o rio
desenha sulcos na lama das margens;
corre loucamente para a foz.
Perco-o de vista.
Toda a minha sede é memória deste rio.
Depois da treva
e dos estilhaços da Lua sobre o oceano,
podem esperar o Sol, as nuvens e o vento:
precisarei somente de alcançar a minha janela
para voltar ao centro do universo
e aí respirar como a terra acabada de lavrar.
Amiúde, a falta de energia
e de dinheiro
coincidiam no pavio
do candeeiro
a petróleo, em lugar certo,
aclarando a vida:
uma chama ali por perto
ia consumindo a torcida.
A petróleo, ali por perto,
a chama duma torcida
em lugar certo
ia consumindo a vida.
As
flores, o cheiro das flores
e
a perfeição que exibem sem vaidade.
As
flores são o contrário do mundo, digo
a
pulcritude da terra áspera que as impele
para
a luz do sol e dos meus olhos.
As
flores são o contrário do que morre,
do
que fere e do que sangra
(pode
ser suor apenas, mas sangra sem o sabermos)
dentro
de nós, que as cheiramos e admiramos
pétala
por pétala a sua beleza natural.
São
tudo isso as flores e são também faróis de esperança
que
trazemos no olhar até que a morte nos junta.
Ovídio Martins vive em silêncio
dentro de cada verso seu.
Mora aí na ponta de praia desde o ventre
de sua mãe, soterrado por mil ou dez mil poemas
mestiços, tanto faz.
Quem lhe tirou o som do mar, até o de Pasárgada,
não sabia que um poeta ouve com o coração,
o imbecil carrasco.
Sentado na esplanada da pracinha
escrevia versos em guardanapos de papel
e Santiago amanhecia num poema
debruçado sobre as grades que separam o Atlântico
mar, prisão e liberdade, do mundo silencioso à sua volta.
Não respira a Palestina, não respira;
a bota sionista esmaga-lhe a garganta.
Não precisaria dizer mais, fosse o que fosse,
porque a morte não vem atrás pedir desculpa;
porque a vida não vem depois abrir os braços.
Não respira a Palestina, não respira,
porque o seu peito já não inspira o ar da vida:
apenas expele o grito da revolta!