sábado, 30 de novembro de 2019

À CHUVA


Uma gota de água fria
veio aquecer-se na minha
pele, que se arrepia
enquanto ela se aninha.

É da chuva que cai
subitamente do céu
miudinha, que vem e vai
e me apanhou sem chapéu.

A gota, na perfeição,
com pontaria e jeitinho
acertou-me com precisão
entre a nuca e o colarinho.

Que falta de delicadeza!
Não reparei que chovia…
Sou amigo da natureza;
Foi um balde de água fria!

A partida não teve graça
Nenhuma, passa por hoje
mas só desta vez passa  
na próxima já não me foge.

Deu-se às pressas a gota,
nem me deu tempo de um ai,
espinha abaixo, a marota,
sei lá onde ela já vai…

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

DEITAR CONTAS À VIDA


Quanto custa um malmequer,
que tenha a contrapartida
de só dizer bem me quer,
quero deitar contas à vida.

Quanto vale um girassol,
que por vontade assentida
não vire as costas ao Sol,
para deitar contas à vida.

E quanto é preciso penar
com conta, peso e medida,
para o cravo não definhar
e eu deitar contas à vida.

E a deitar contas à vida,
os anos em flor já lá vão…
o que sobra é tara perdida
e as contas certas ou não.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

TRÂNSFUGAS


Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo

dispara à queima roupa

verás o meu sangue ganhar terreno

ah a tua pressa
pode lá haver quem a denuncie!

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

NATUREZA CONTRADITÓRIA




O homem não deveria mexer onde a natureza
já fez tudo o que havia para fazer.
Mas o homem mexe por ser a sua natureza.

E nesta contradição vivemos:
o homem na natureza e a natureza do homem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

AGORA


São iguais o antes e o depois,
pretextos de quem chora:
não existe nenhum dos dois,
tudo o que existe é agora.

Antes, lágrima de saudade;
depois, um desejo ardente.
Nenhum é pois verdade;
tudo é fantasia, tudo é aparente.

A dor que dói é esta dor, não
me magoa a dor de outrora,
mas se depois, por qualquer razão,
voltar, será de novo agora.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

POSSIBILIDADE DE AGUACEIROS


Não sei o que pensa; se pensa o vento;
por que agita o ar; se é temperamento;
ou por que se aquieta e morre devagar,
quando me inunda o peito e deixa respirar.

É feitio seu; modo de ser da natureza
ou então coisa alguma, com certeza
flui por ser livre e ser ao mesmo tempo
etéreo, soberano, altivo, vento…

Vento que for, será sempre passageiro,
seja ele brisa ou desafio de aguaceiro,
cessando pouco a pouco até parar.

Todo o vento é bom para quem o desejar:
para mim, repito, quero-o manso ao respirar
mas o mesmo não serve para o moleiro.

sábado, 16 de novembro de 2019

FLORES À JANELA


Na janela vejo flores e elas
a olharem para mim
debruçadas são tão belas,
que só elas o fazem assim.

Sinto o perfume das flores
como tranças de uma fada;
regalam-me o cheiro e as cores
da floreira da sacada.

Fico suspenso, preso nelas,
como o caule que as alteia:
fazem-me adeus das janelas,
- adeus flores da minha aldeia.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

CORAÇÃO SOLIDÁRIO


Hoje vou abrir uma excepção:
vou simular que tenho uma pedra de granito
enorme no lugar do coração.
Que não sinto, que não preciso do teu ombro
e tudo, em mim, me é indiferente.
Subirei o mais alto que puder, à mais alta montanha,
e aí tocarei o sol, queimarei as mãos.
Toda a areia das minhas lágrimas
atulhará o oceano, dará força e consistência
ao clamor dos povos da América do Sul.
Beijarei depois as mãos do povo Inca,
uma por uma, e juntos gritaremos ao mundo:
La union es la fuerza!

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

AS CASAS DE NOVO


Ao longe as casas, memória delas,
há tanto tempo, que são as casas agora?
Portas, varandas, alpendres, janelas
ou quartos e salas onde gente mora…

As casas, de pedra e cal, dormem o seu sono;
cobrem-nos os sonhos em silêncio profundo.
As casas ao longe são como um trono
e por dentro verosímeis interiores do mundo.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

RISO


Por falar em riso, que a loucura, insatisfeita,
sempre agradece, direi que o Sol desta manhã
surgiu como uma imensa gargalhada.
Nada diria sobre este assunto se ontem
o dia não tivesse estado uma lástima cinzenta,
sisudo, como se quisesse dizer que o Sol
tinha mudado de mundo de uma vez por todas.
Toda a loucura se compraz com estes prodígios
e se voltar a chuva e depois o Sol voltarei a rir,
que a loucura, insatisfeita, sempre agradece.  

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

OS MARGINAIS


Ei-los, que se atrevem de novo,
espalhando aos quatro ventos serradura,
que sangre a gente, que cegue o povo
e se abra caminho a nova ditadura.

Grunhem, uivam em desespero,
abrigados no fino manto que os cobre
mas por mais que finjam no tempero
não passam de pregoeiros de peixe podre.

Mas insistem em descobrir argueiros
nos olhos já cansados só de os ver:
damas de alfinete, caceteiros
e os demais que o diabo há-de trazer.

A todos eles, cá os esperaremos de atalaia,
haveremos de merecer a terra onde nascemos,
não permitindo que gente dessa laia
nos traga de novo as feridas que tivemos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O CORVO E O GATO


o corvo pega
pega o gato
sape pega
sorte do gato

sem há fim à vista
o desiderato
o corvo que insista
que disfarce o gato

-ai corvo amigo
lá pensa o gato
chamava-te um figo
à mesa no prato

-gato maltês
pareces o diabo
espera e já vês
que te como o rabo

sábado, 2 de novembro de 2019

DIA DE FINADOS


Um dia tudo acaba.
Ficam as flores envelhecidas numa jarra esquecida;
um par de sapatos velhos e sem atacadores no sótão;
os papeis a que tínhamos perdido o rasto;
as últimas tarefas, aquelas que não se realizaram
por falta de tempo, que inexperientes e incautos
(os outros chamavam-lhe teimosia) julgámos ter de sobra;
e a memória, se a deixarmos, num retrato do aparador.
Se mais memória de nós houver, talvez a evocação
anual do ente que tão cedo lhe foi ceifada a vida
ou tão generosos lhe foram os longos anos de existência.
Eis a vantagem do que de si se pode ainda presumir.
Depois, trocaremos o vocabulário pelo silêncio
e ninguém mais se lembrará de tais lamechas.
Então, muitos teremos direito a flores.
Umas em plástico, muitas sem tamanho merecimento.


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

AS PENAS


O que nos faz voar é as penas; as asas são adiáforos
que iludem os caminhos…