sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

JOGO DA FOME




é pouca a sopa
no prato, na boca
muito pouca

e eu que o diga
ao que me obriga
melhor, à barriga

ó contradição
raio da alimentação
que me consome!
se dá pró torto
é fome de morto
ou morto de fome?


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

BEIJOS DE ÁGUA




Chamem-lhe água à solta ou rio,
que de pedra em pedra murmureja;
é aí que a minha sede sacio,
sorvo a sorvo como quem beija.

Ao beijar a água doce da corrente,
matando a sequidão, ela canta:
o rio percorre o corpo de contente,
refresca a minha alma e a garganta.

E quando, enfim, a sede saciada
permite à lucidez que se revele,
eu dou conta que o beijo da levada
foi do rio a mim e não eu a ele.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

PALAVRAS



Soletro devagar a palavra frágua
e gosto do que me chega ao ouvido,
capaz de incendiar toda a mágoa,
se o fogo fizer algum sentido.

Escrevo a palavra lume e apago-a,
queima-me os dedos, a tinta ferve,
uma tempestade num copo d’água,
apenas isso, para mais não serve.

São afinal palavras, nada mais…
Não sei que voltas dão, saem pela boca,
não passam de pequenos sinais
e o que demais trazem é coisa pouca.

Um grito, um pedido, um lamento…
Caem como as folhas; leva-as o vento.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

FERNANDO PESSOA


De todos serei um, não mais que isso,
e será moléstia a pretensão de o ser;
dois, vá que não vá. Para ser conciso
de quantos for serei quantos eu quiser.

Às vezes não caibo em mim, isso é verdade,
então detenho-me e fico preso sob suspeita,
não vá alguém acreditar em tal ubiquidade,
mas isso é modo de dizer, é frase feita.

Porém, se afinal não fui, não sou nenhum,
sendo quem sou, Pessoa de carne e osso,
de todos serei eu e apenas um,
assim me faço e dou, que mais não posso.

sábado, 18 de janeiro de 2020

JOGOS DE OLHAR




Espreito os teus olhos a medo
por não serem olhos de ver
são antes, em ti, um segredo
e em mim cegueira de os ter.

Jogam comigo às escondidas
fingem que se vão esconder,
que eu já dou por adquiridas
as voltas que dou sem os ver.

Voltam mais tarde a aparecer
neste vaivém permanente…
não sei se ainda os quero ver,
se os vejo e o olhar me mente.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

NOVE VIDAS, NOVE LUAS


Nove sóis de luz
nove sóis de março
‘inda mal eu nasço
já além me pus
já além me pus

Nove vilas corro
nove vilas venço
e não me convenço
que um dia morro
que um dia morro

Nove ais de mim
nove encruzilhadas
mil enganos nadas
há-de ter um fim
há-de ter um fim

Nove meias solas
nove quase amores
novecentas dores
nove carambolas
nove carambolas

Nove águas turvas
nove nuvens rasas
dai-me as vossas asas
às primeiras chuvas
às primeira chuvas

Nove bem contadas
ao longo dos anos
sem contar enganos
nove bem contadas
nove bem contadas

Nove luas d’água
em que fui refém
dentro da minha mãe
nove luas d’água
nove luas d’agua

Nove luas novas
nove luas cheias
são como colmeias
novas caras novas
novas caras novas

Nove vidas nove
vividas uma a uma
sem pressa nenhuma
nove vidas novas
nove vidas novas



domingo, 12 de janeiro de 2020

VÁ LÁ, ALEGRIA


Vá lá uma gotinha de música
neste dia açucarado;
vá lá um raio de sol,
também é do meu agrado.

Vá lá um cheirinho de vento,
não parem as caravelas;
eu quero que o povo acorde,
abra portas e janelas.

Vá lá uma canção de amor
de improviso, sem solfejo,
daquelas que matam a dor
e têm o sabor de um beijo.

Vá lá para o que me deu,
valeu a pena esperar:
sequei as lágrimas do peito
estava farto de chorar.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

AVC - ACIDENTE DO VERSEJADOR CEREBRAL




Ontem apaguei dezenas de versos
só por não dizerem, no poema possível, o que procurava
ansiosamente.
Os versos não têm culpa, não há meio de ter juízo…
Agora sinto saudades deles.
Deixaram-me a poesia moendo, moendo, moendo,
e ambos sabemos que sem versos não há poema que valha.

domingo, 5 de janeiro de 2020

MEIAS PALAVRAS


Acabei de criar algumas palavras novas
e não sei ainda o que fazer com elas,
sequer como se pronunciam,
mas já saltitam de linha em linha,
por meias palavras, espalhando a novidade,
enquanto não lhes dou significado e argumento.
Mais tarde falarei com elas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

ABRIR CAMINHO


Tocando a carga a mando, dia a dia,
e ajoelhando aqui e ali, quando calha,
não dá para ver (não é vida nem é via)
com quantos paus se faz uma cangalha.

Um olho basta aos dois que nos assistem;
um olho só pode ver toda a jogada
que eles, por serem cegos, cumulam, insistem,
com quantos paus se faz uma jangada.

Só uma solução existe, só de um modo,
e esse é o nosso canto, a voz que soa:
assim verão (quando, enfim, formos um todo)
com quantos paus se faz uma canoa…