sexta-feira, 28 de junho de 2019

NATUREZA MORTA


Teve tudo para ser rosa,
a rosa tudo teve para sê-lo
no aparador de vidro,
no solitário de cristal.

As pétalas, porém,
foram traindo, caindo…
Ainda é uma rosa, hoje,
na memória que dela sobrou.

Amanhã ponho outra flor.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

VIVER DE GRAÇA


Que posso eu pedir mais,
vejo e oiço de graça,
respiro como os demais.

Assim ergo a minha taça
a óxidos, bases, ácidos e sais
servidos em qualquer praça.

Sou um de mil pardais
ou bicho da mesma raça,
não sou menos nem mais.

Poiso e vejo quem passa
e os poemas são asas tais,
que viajo também de graça.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

INVERSÃO DA PIRÂMIDE INVERTIDA


O homem não se comporta como devia
   o bacalhau é infiel ao homem
      o rato fugiu ao gato
        o gato dorme
          acochado
           ao cão         

           O cão
       mordeu o gato
    o gato mordeu o rato
   o rato mordeu o homem
o homem morreu com uma espinha
de bacalhau atravessada na garganta


sábado, 22 de junho de 2019

OS HOMENS E AS ÁRVORES


Os homens invejam o tamanho das árvores;
receiam que elas lhes roubem o céu,
por isso as cortam, para o céu descer à sua altura.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

PRIMAVERA


A Primavera tem este condão
de me seduzir qual andorinha,
vendo os teus decotes já de Verão
no corpo frágil em pele de galinha…

Sei mais: o pólen perfumado
das flores, o tímido sol refulgente
e o teimoso melro, inconformado,
imitando os sons de toda a gente.

E a aragem mansa corre no jardim,
sabe bem. Agitam-se arbustos ao de leve,
o dia demora-se, parece não ter fim
e a tanta pulcritude a noite não se atreve.

terça-feira, 18 de junho de 2019

CONTA-GOTAS


Uma gota que seja
e nela a água toda,
que molhe e não se veja
vai pingando, incomoda.

Pingue, pingue, a gota
vai alagando o chão
uma a uma não se nota
e mata e mata ou não.

Não mata a gota, cai,
alaga, se não mata mói
vai e vem, vem e vai
pingue, pingue, dói.

Já é mar faz de conta,
malvada seja, a gota,
então não é afronta
que mal se vê, mal se nota?

domingo, 16 de junho de 2019

GERÂNIOS


Nascem por aqui e por ali, os gerânios,
órfãos da soleira da porta…
suplicam um momento de atenção,
seduzem pela cor e pelo atrevimento.

Ninguém os plantou naquele lugar,
são voluntários. Estão por sua conta.

À noitinha caminham pelas ruas
e de manhã cedo aquietam-se junto às casas,
cumprimentando quem passa,
como se ali tivessem permanecido a vida inteira,
julgo que é assim que acontece.

Os gerânios não sabem se haverá amanhã,
mas se houver, será um bom dia para viver.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

O SENTIDO DAS PALAVRAS


Dizes liberdade e água e pão como eu digo,
com as mesmas letras de quem não come.
Oiço-te muito bem, oiço-te e sigo,
pois nada do que dizes me mata a fome.

Podes gritar, indignar-te, espumar pela boca,
não é a minha deixa, o quadro não me assiste.  
Quando eu clamar de tudo o que me sufoca
dirás que não me entendes, nunca me viste.

Em nome das palavras ficamos entendidos:
As tuas não chegam ao que as minhas são capazes:
só aparentemente vão nos mesmos sentidos,
não fosse a sua condição na luta de classes.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

LASTRO ANCESTRAL


Quero lá saber se é nascente
ou foz a água em que me afogo:
quero é uma bóia onde me assente
e deixe a dúvida para mais logo.

Se para ir ao fundo é bastante
não ter arte ou erudição de peixe,
ficarei onde já não me levante,
o corpo teime ou não me deixe.

Ou não, que o fundo não é morte,
é antes uma espécie de colchão
onde a alma, com alguma sorte,
sobe, vai à tona e dá-me a mão.

Morrer será assim o que consiste
em ir ao fundo e vir depois acima;
um raro carrossel em que subsiste
em vida, carregar a morte em cima.

domingo, 9 de junho de 2019

O TEMPO ESTÁ CERTO


Surpreendido, o tempo, com o tiquetaque das horas,
riu-se dos ponteiros do relógio… - andam às voltas, disse,
desencontrados, não têm tempo para nada. 

sexta-feira, 7 de junho de 2019

A BICICLETA


Pedala e não se cansa
o ciclista na pasteleira,
um pé recua, outro avança
rola a roda pedaleira.

Pedalando na bicicleta,
vai andando, vai andando,
corta curvas em recta
vai correndo, vai voando.

Cansada, não pode mais,
de tanto rolar na estrada,
são tantos os uis e os ais,
que não aguenta a pedalada.

E a bicicleta balança, chia,
pressa já não é com ela;
vai muito longe o seu dia,
perdida a camisola amarela.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A BANCA ABANCA


a banca
abanca
toma assento
à mesa do orçamento

dá vazão
ao livro de razão
deve e haver
é seu dever

dever que não basta
a esta casta
subtrair ou somar
sem pagar

então denota
que de nota
nunca é demais
e pede mais

a banca rota
abarrota
diplomata
ou morre ou mata

vai acima vai abaixo
e bota abaixo

segunda-feira, 3 de junho de 2019

BORRÃO SOBRE A4


Quis dar cor a algumas ideias
que, mimosas, nas suas sete quintas,
não tardaram em ficar feias
ou fui eu que carreguei nas tintas.

sábado, 1 de junho de 2019

LOJA DE BRINQUEDOS


Há de tudo em pevece:
carrinhos, bonecos,
livros que ninguém lê,
joguetes e tarambecos.

Os monos estão vendidos,
sobretudo os sem rabo,
e alguns de rabos compridos,
mais traquinas que o diabo.

Balões, naves espaciais,
fofos ursinhos felpudos,
condições excepcionais,
a bom preço quase tudo.

Outros, por mais ocultos,
o super-homem, o homem-aranha,
foram levados por adultos
para a última campanha.