quinta-feira, 30 de maio de 2019

GUARDA RIOS


Tinha coisas importantes para dizer
e de um momento para o outro acabei
por abandonar a ideia. Era sobre os rios,
mas tive medo de ser mal interpretado…
Lembrei-me que talvez não vos interessasse
saber ou vos maçasse ao falar de um tema
tão corrente. Corrente é o termo exacto.
Mas como nunca lhes prestais atenção
e preferis as pontes... Os rios molham
é isso; lavam o que é preciso e levam
o que é descartável e sem utilidade.
Quase sempre há pontes para os atravessar
em certos pontos, sem problemas de maior,
para o outro lado, para o lado sem rio.

Na verdade, esse lado onde já não há rio
é cada vez maior e o que queria contar, insisto
(continuo a maçar-vos com ninharias…),
é que se prevê acabar com as pontes,
o que é a única boa notícia, porque se prevê
que os rios sequem e com eles a vossa água
canalizada e mesmo a vossa água benta.
O mar ficará então cheio de rios mortos,
gigantescos e cintilantes cristais de sal
para serem vistos por outros a milhares de anos luz.
Podereis assim deixar de passar por cima
desses problemas chamados rios,
dar largas ao que designais por águas passadas
e enxugar de sede a vosso belo prazer.


terça-feira, 28 de maio de 2019

ÁRVORES


No que às árvores diz respeito,
há dois sujeitos em mim:
um que as honra e, com efeito,
outro que as tem por outro fim…

Em qual dos dois que proclamo
sou mais sensato ou mais bruto:
quando as admiro ramo a ramo
ou quando lhes saboreio o fruto?

domingo, 26 de maio de 2019

DUAS OU TRÊS PALAVRAS SOBRE A DETERMINAÇÃO



Diz-me a vontade que execute
o que a sujeição me priva:
diz-me a vontade que faça; diz-me a liberdade que lute!

sexta-feira, 24 de maio de 2019

EXISTÊNCIA SEM PROVAS


Não há provas científicas sobre a minha existência
e no entanto tenho sobrevivido com base
num velho documento, autenticado, de seu nome
Cédula Pessoal. Um milagre tê-la guardado até hoje.

Faço pontualmente as minhas festas de aniversário
mas quase ninguém se importa com isso. Eu mesmo
lhes dou cada vez menos importância e até me custa
este ciclo ao mesmo tempo involuntário e indeclinável.

Tudo se passa numa espécie de clandestinidade,
onde o dia é dia e a noite é noite para quem passa
e para mim um entardecer persistente e sem provas.
Nota: não precisam de rezar para eu aparecer…

quarta-feira, 22 de maio de 2019

NO PRINCÍPIO




No princípio a terra estava fria e o orvalho da noite
ainda latejava sobre as pétalas, que despertaram
com os primeiros raios de Sol.
De madrugada tudo é gelado, da raiz às folhas,
o gelo é o primeiro berço da terra.
Gelada é também a destreza dos insectos,
que a esta hora já começam a tomar assento
à mesa da primeira refeição do dia.
Tudo principia com o gelo no ciclo diário da terra.

Com as botas enterradas na lama fértil,
o dorso curvado sobre as ervas e sementes
e as mãos remexendo couves, cebolas, alhos, cenouras,
as primeiras atenções são rogos para que cresçam…
O Sol que vier fará pelos frutos.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

O CACTO


Sol na eira e chuva no nabal
é um desejo, não é um facto,
natural é que no deserto austral
o sol vergue os braços do cacto.

São coisas que acontecem
ora por baixo, ora por cima:
uns vivem bem, outros falecem,
não há volta a dar ao clima…


sábado, 18 de maio de 2019

CASA À VENDA


Tenho a casa à venda,
em alternativa à renda
isenta de endereço,
rústica e bem arejada
de uma só assoalhada,
negoceio por bom preço.

Longe de ser uma tenda,
esta óptima vivenda
tem o dia inteiro de sol
e à noite a luz da lua,
ampla varanda prá rua
e escadinhas de caracol.

Vasto parque de merenda,
móvel, prática, estupenda,
onde não falta quase nada,
segundo o último inquilino
(mais sonso que ladino),
muito calma e muito airada.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

PASSARINHO NA ORELHA


O passarinho cochicha
como um zunido de abelha,
bom camarada e compincha,
amigo detrás da orelha.

Coisas certas umas,
outras sem sentido;
umas penas outras plumas,
disse-me o passarinho ao ouvido.

Dito o que havia a dizer,
mais não disse o passarinho.
Agora tem mais que fazer
e lá se foi de volta ao ninho.

terça-feira, 14 de maio de 2019

PENSAR O QUE NÃO LEMBRO


Não me lembro de nada, sequer como aqui cheguei,
se é que cheguei, como aparentemente o pressinto.
Não me lembro de coisa alguma, a não ser o facto
de me lembrar que realmente não me lembro de nada.

A par de tudo isto, e tudo isto é um vazio repleto
de tudo o que é esquecimento, que por isso é vazio,
há ainda a perturbação pelo que pode agora não lembrar
e lembrar depois, quando já não lembrar ao diabo.

Na verdade, o que mais quero é não me lembrar de nada;
incluindo o nada que agora lembro que não me lembro

domingo, 12 de maio de 2019

SEI DE UM BARCO


Sei de um bote, um barco ou um navio
repleto de soldados e marinheiros,
e de outros, que por destino ou extravio,
não foram muito além dos areeiros.

Sei de uma jangada de vela panda,
que os ventos enchem de areia e sal,
aparentando navegar, mas já não anda
e se dá pelo nome de Portugal.

Foi um pássaro que me disse, inquieto,
que a estibordo mete água, afunda
sem remédio, como bóia moribunda,

sem se saber já se foi mal do arquitecto
ou se de outros infortúnios foi objecto
para tal sina e desgraça tão profunda.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

ÍNTIMO


Num íntimo abraço
e nas pétalas da flor,
há em comum um traço
um meigo regaço,
um casulo de amor.

Num íntimo beijo
e nas águas do mar,
há em comum o desejo
de ter o ensejo
de em ti navegar.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

OVERDOSE


Drageias…
ah, se as houvesse para o sonho!
Hoje mesmo ignorava
a prescrição e engolia-as de uma só vez.
Depois…
Depois repousava numa nuvem qualquer,
desde que imaculadamente branca,
e aguardava o momento certo de me aspergir… 

segunda-feira, 6 de maio de 2019

A GENTE A FALAR

bater asa
não é como
bater as asas

bater a bota
não é como
bater com as botas

bater à porta
não é como
bater com a porta

esticar as pernas
não é como
esticar o pernil

cantar de galo
não é como
cantar do galo

tiro ao pé
não é como
tiro no pé

dia de conversa
não é como
conversa em dia

a puta da língua
sempre na ponta da língua



sábado, 4 de maio de 2019

BURACO DO TEMPO




Um buraco à volta do tempo,
uma volta ao tempo do buraco,
um tempo com um buraco à volta
contemplo, com tempo, com templário
num buraco algures de volta.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

QUADRAS PARA POEMA E MOTE

Poesia pode ser profana,
alma ou luz de uma ideia:
tanto pode ser Joana,
como, a seguir, Dulcineia.

Poesia é uma flor por nascer
e quando floresce é bem-vinda.
Por enquanto, é bom de ver:
não é poesia, ainda.

Poesia é um sol de encanto,
o desenho duma flor
e vá-se lá saber quanto
do brilho é lápis de cor.

Poesia é uma ave-do-paraíso
que me faz a corte, me algema
e, exuberante, quando é preciso,
pousa no galho dum poema.