I
No princípio, era um pequeno lago
com juncos e salgueiros nas orlas,
e também rãs, que, desde o início da primavera,
coaxavam noites inteiras em busca de sorte.
Aos domingos era a nossa piscina,
o nosso lugar de piquenique e de repouso,
perturbado apenas pelas moscas,
pelo seu abuso em provar o farnel exposto
e pela teimosia inata em poisarem e voltarem a poisar.
Havia também uma ponte muito velha
com gradeamentos igualmente velhos.
Não sei se por isso, já uma mulher tinha caído à água.
Outros diziam ter sido uma criança
e outros ainda que afinal fora um velho.
A sorte de quem quer que tenha sido é tão confusa como a notícia.
No princípio, como disse, era um pequeno lago
com peixes e cobras de água em permanente bailado subaquático.
Mergulhávamos naquelas águas durante toda a manhã
e um pouco à tarde, depois da digestão.
Já completamente exaustos, enxugávamos ao sol
– nossa toalha de banho –
Em suma, no desconhecimento absoluto do que faltava de mundo,
o pequeno lago foi o ideal de vida,
a única viagem de sonho a cada domingo de verão.
Entretanto crescemos.
Fizeram umas barracas de madeira
para venda de comidas e bebidas onde antes nos rebolávamos,
construíram uma nova ponte em betão,
mas permanecem os juncos e os salgueiros e os batráquios também.
Disseram-me que estava tudo muito turístico.
A propósito: na verdade, o pequeno lago é um rio, um pequeno rio,
afluente do Tejo, mas isso não tem importância nenhuma.
II
Um dia o meu pai queimou as costas e foi uma tragédia.
Ele queria somente aproveitar o sol,
que era uma dádiva de domingo.
De início foi apenas um escaldão
mas à noite é que foram elas.
Gemeu, contorceu-se com dores,
e ainda hoje tenho as minhas dúvidas
quanto ao suor que lhe ensopava o rosto:
ele não queria desvendar as lágrimas,
e muito menos aos filhos, mas penso que chorou e não foi pouco.
Durante uma semana tememos ficar sem pai,
– que nunca tínhamos visto acamado durante o dia –
mais pela presença diária do enfermeiro, que fazia o curativo,
que pela continuação dos queixumes.
Mas esta espécie de catástrofe familiar
depressa foi debelada e tudo voltou ao normal.
O esplendor do pequeno lago ou o rio, como mais tarde soubemos,
nunca foi beliscado.
Apesar de tudo, sempre nos lembrámos
daquele lugar de salgueiros e juncos, de rãs,
de peixes e cobras de água dançarinos,
como um sítio aprazível e fresco,
com águas transparentes até onde havia pé,
como era impossível em qualquer outra parte do mundo.
III
Ainda não havia achigãs.
Surgiram mais tarde e em grande quantidade.
Comiam tudo o que mexesse.
Pescavam-se bogas e barbos,
que mordiam o anzol atraídos por uma larva branca,
concebida de propósito,
e também ela condenada ao passatempo dos pescadores de fim-de-semana.
Para estes, os nossos divertidos mergulhos
ou mesmo as nossas chapinhadas eram motivo de censura:
assustavam os peixes, afastavam-se e já não picavam.
A realidade é que havia espaço para todos:
a malta tomava banho e eles sempre filavam peixe.
O regresso a casa era à tardinha, que é como quem diz,
quando o sol mudava a cor para descer e se enterrar no chão,
ao longe, e arrefecer como nós, à custa duma brisa fresca,
implacável, a anunciar o fim do dia.
Mas o pequeno rio não era esquecido:
dormia connosco essa noite e a seguinte e outra ainda,
e mesmo que o quiséssemos ignorar,
o latejar das peles quase pueris,
os tufos de areia nos bolsos e bainhas
e o anseio pelo próximo domingo, eram lembranças bastantes.
A água deste rio ainda hoje corre nos meus sonhos.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
QUATRO HORAS
Batem as quatro lá fora.
Não para que eu saiba que são exactamente quatro horas,
mas para que recorde a torre que as apregoa
e o ror de horas que já lhe ouvi.
Às vezes parece pedir desculpa, mas o tempo não perdoa…
De facto, a velha torre permanece intacta na minha memória,
e tão rigorosa, sejam quais forem as horas anunciadas.
Contei-as. Sei que são quatro.
É-me contudo indiferente:
dentro de mim são todas as horas de todos os dias, de todos os anos.
Apesar disso, a torre permanece inalterável,
como se batesse todas as horas às quatro;
como se batesse sempre quatro horas dentro de mim.
Não para que eu saiba que são exactamente quatro horas,
mas para que recorde a torre que as apregoa
e o ror de horas que já lhe ouvi.
Às vezes parece pedir desculpa, mas o tempo não perdoa…
De facto, a velha torre permanece intacta na minha memória,
e tão rigorosa, sejam quais forem as horas anunciadas.
Contei-as. Sei que são quatro.
É-me contudo indiferente:
dentro de mim são todas as horas de todos os dias, de todos os anos.
Apesar disso, a torre permanece inalterável,
como se batesse todas as horas às quatro;
como se batesse sempre quatro horas dentro de mim.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
PALAVRAS
A pequena palavra não é malcriada:
nega, recusa e resmunga, teimosa.
Procuro uma palavra mais educada,
compreensiva e menos conflituosa.
Sim, é cordata e parece-me bem.
O defeito é a presunção e a vaidade
e, parecendo que não, não há quem
acredite em tanta disponibilidade.
Entre elas – sim e não – há um conflito
que só permite uma de cada vez.
Não dou ainda, por isso, o veredicto:
julgarei melhor a escolha. Talvez.
nega, recusa e resmunga, teimosa.
Procuro uma palavra mais educada,
compreensiva e menos conflituosa.
Sim, é cordata e parece-me bem.
O defeito é a presunção e a vaidade
e, parecendo que não, não há quem
acredite em tanta disponibilidade.
Entre elas – sim e não – há um conflito
que só permite uma de cada vez.
Não dou ainda, por isso, o veredicto:
julgarei melhor a escolha. Talvez.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
DO MAR À TERRA, DA TERRA AO MAR
Há muitos anos que considero a Vila da Nazaré, a par de Castelo Branco, como minha terra. Adoptiva, é certo, mas não menos amada, bem como as suas gentes.
Tenho naquela terra de pescadores, amigos, famílias inteiras de quem, por vezes, já não reconheço os filhos mais novos como, aliás, acontece em Castelo Branco. Tenho também em ambas memória de amigos que já não estão entre nós. Sinto-me honrado com a empatia gerada nesta minha terra adoptiva.
Mas de quem eu queria falar era do Joaquim António, o meu primeiro grande amigo Nazareno. Ainda era embarcadiço quando o conheci. Andava num petroleiro meses sem fim e dava à costa no verão, altura em que nos encontrávamos. Era um homem alto, vermelhão de carnes, de cabelos loiros quase nunca penteados, nariz aquilino e com um coração do tamanho duma traineira. Na verdade, passava por turista inglês. Dizem que com algum sucesso com o sexo oposto. Faleceu há meia dúzia e anos.
Chegou o tempo da reforma e o bom Joaquim António regressou à terra natal, depois duma vida de trabalho pesado longe de casa. Passeava-se pela praia, que é como quem diz, fazia umas piscinas na marginal, sempre inquieto e cheio de ideias para contrariar a falta que lhe fazia a actividade no mar, que por ironia era a sua terra de uma vida.
Um dia disse-me, irradiando contentamento por todos os poros:
- Já sei o que vou fazer. Compro umas artes (barco e redes) e vou entreter-me na pesca.
Achei boa ideia, mas esta é outra estória que não quero contar hoje.
O negócio haveria de se revelar desastroso nas mãos dum homem que o pouco que pescava – a Nazaré já não tem o peixe de outrora – era oferecido mesmo antes de chegar ao paredão, quanto mais à lota. Nem com arte xávega lá chegaria…
Só pelo brilho dos seus olhos de regresso ao mar valeu a pena. Mas não era vida que desse frutos.
Continuou os seus intermináveis passeios entre o picadeiro e o Porto de Abrigo até que nova ideia surgiu. Tão entusiástica como a primeira: Iria abrir um restaurante.
- E já está decidido. O prato forte é a caldeirada à nazarena.
O Joaquim António voltava a sorrir, o seu corpo movia-se de novo com a vivacidade própria de outros tempos, apesar dos seus sessenta e muitos, nunca exactamente revelados.
- Mas o restaurante vai ter uma característica especial. – E esclarecia – Vai ser colocada uma caixa à saída e são os clientes a fazer o troco.
Um ou dois anos depois a dita casa de pasto tinha encerrado. Ao que parece, havia quem comesse a refeição sem pagar e ainda levava troco. Assim não há negócio que aguente!
Mais tarde, já após o seu falecimento, confidenciou-me um amigo comum:
- O Joaquim António passou demasiado tempo no mar; não conhecia as pessoas em terra. Na sua terra.Ao Aníbal Freire
e em si a todos os nazarenos de bom coração
Tenho naquela terra de pescadores, amigos, famílias inteiras de quem, por vezes, já não reconheço os filhos mais novos como, aliás, acontece em Castelo Branco. Tenho também em ambas memória de amigos que já não estão entre nós. Sinto-me honrado com a empatia gerada nesta minha terra adoptiva.
Mas de quem eu queria falar era do Joaquim António, o meu primeiro grande amigo Nazareno. Ainda era embarcadiço quando o conheci. Andava num petroleiro meses sem fim e dava à costa no verão, altura em que nos encontrávamos. Era um homem alto, vermelhão de carnes, de cabelos loiros quase nunca penteados, nariz aquilino e com um coração do tamanho duma traineira. Na verdade, passava por turista inglês. Dizem que com algum sucesso com o sexo oposto. Faleceu há meia dúzia e anos.
Chegou o tempo da reforma e o bom Joaquim António regressou à terra natal, depois duma vida de trabalho pesado longe de casa. Passeava-se pela praia, que é como quem diz, fazia umas piscinas na marginal, sempre inquieto e cheio de ideias para contrariar a falta que lhe fazia a actividade no mar, que por ironia era a sua terra de uma vida.
Um dia disse-me, irradiando contentamento por todos os poros:
- Já sei o que vou fazer. Compro umas artes (barco e redes) e vou entreter-me na pesca.
Achei boa ideia, mas esta é outra estória que não quero contar hoje.
O negócio haveria de se revelar desastroso nas mãos dum homem que o pouco que pescava – a Nazaré já não tem o peixe de outrora – era oferecido mesmo antes de chegar ao paredão, quanto mais à lota. Nem com arte xávega lá chegaria…
Só pelo brilho dos seus olhos de regresso ao mar valeu a pena. Mas não era vida que desse frutos.
Continuou os seus intermináveis passeios entre o picadeiro e o Porto de Abrigo até que nova ideia surgiu. Tão entusiástica como a primeira: Iria abrir um restaurante.
- E já está decidido. O prato forte é a caldeirada à nazarena.
O Joaquim António voltava a sorrir, o seu corpo movia-se de novo com a vivacidade própria de outros tempos, apesar dos seus sessenta e muitos, nunca exactamente revelados.
- Mas o restaurante vai ter uma característica especial. – E esclarecia – Vai ser colocada uma caixa à saída e são os clientes a fazer o troco.
Um ou dois anos depois a dita casa de pasto tinha encerrado. Ao que parece, havia quem comesse a refeição sem pagar e ainda levava troco. Assim não há negócio que aguente!
Mais tarde, já após o seu falecimento, confidenciou-me um amigo comum:
- O Joaquim António passou demasiado tempo no mar; não conhecia as pessoas em terra. Na sua terra.Ao Aníbal Freire
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
O TEMPO
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
CONTRA O TEMPO
Montado na palavra certa
deslizo pela montanha a velocidade superior
- Superior? Quantas vezes superior! –
aos raios de sol que chispam nas ramagens das árvores
à minha passagem desenfreada.
Cruzo-me com tudo o que já não é nada
ou não parece nada ou é alguma coisa e sou eu que me precipito
para coisa alguma.
A meio caminho, já o pensamento é contraditório:
como travar esta geringonça
a tempo de não me estatelar no muro final,
porque estas correrias loucas costumam ter um muro no final.
Que palavra agora para travar, se todas elas são um carrossel
vertiginoso e sem contornos definidos?
A deriva vai a dois terços da aventura.
Desesperado, consigo, no último instante, um
fim.
deslizo pela montanha a velocidade superior
- Superior? Quantas vezes superior! –
aos raios de sol que chispam nas ramagens das árvores
à minha passagem desenfreada.
Cruzo-me com tudo o que já não é nada
ou não parece nada ou é alguma coisa e sou eu que me precipito
para coisa alguma.
A meio caminho, já o pensamento é contraditório:
como travar esta geringonça
a tempo de não me estatelar no muro final,
porque estas correrias loucas costumam ter um muro no final.
Que palavra agora para travar, se todas elas são um carrossel
vertiginoso e sem contornos definidos?
A deriva vai a dois terços da aventura.
Desesperado, consigo, no último instante, um
fim.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
QUADRATURA
A vida colheu-me cedo:
quase desde que nasci,
e assim perdi o medo
do que mais tarde vivi.
Pechinchas, amendoins,
as letras do abecedário,
são meios; não são fins:
contas de outro rosário.
Apaguei fogos alheios,
de amores, assim-assim.
Beijos e afectos, dei-os,
não os guardei para mim.
As providências que tomo,
sempre que a fome poisa,
limitam-se à poesia, como
quem não quer a coisa.
quase desde que nasci,
e assim perdi o medo
do que mais tarde vivi.
Pechinchas, amendoins,
as letras do abecedário,
são meios; não são fins:
contas de outro rosário.
Apaguei fogos alheios,
de amores, assim-assim.
Beijos e afectos, dei-os,
não os guardei para mim.
As providências que tomo,
sempre que a fome poisa,
limitam-se à poesia, como
quem não quer a coisa.
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
LUIS VAZ
Digo que aquilo era gente a mais, amigo. Musas,
deuses, heróis e mártires, ladrões de almas lusas.
Olho por olho; dente por dente. Refrega e morte!
Era previsível este destino estéril e esta sorte.
Demolhados, os teus papéis tomaram rumo,
e, porém lenda lusíada para doméstico consumo,
viraram ratio essendi da lusitana literatura,
ainda válida, robusta e sem qualquer beliscadura.
Para os anais, a miséria, o nojo e o cruel destino.
Desculpa a prosápia de quem te lê desde menino,
mas que, no fundo, se motivo há por que te escolho,
é apenas por aquela burlesca caricatura de zarolho.
deuses, heróis e mártires, ladrões de almas lusas.
Olho por olho; dente por dente. Refrega e morte!
Era previsível este destino estéril e esta sorte.
Demolhados, os teus papéis tomaram rumo,
e, porém lenda lusíada para doméstico consumo,
viraram ratio essendi da lusitana literatura,
ainda válida, robusta e sem qualquer beliscadura.
Para os anais, a miséria, o nojo e o cruel destino.
Desculpa a prosápia de quem te lê desde menino,
mas que, no fundo, se motivo há por que te escolho,
é apenas por aquela burlesca caricatura de zarolho.
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