Há muito tempo que o Jacinto não fazia uma das suas. Em criança chamavam-lhe o desassossego, assim, com letra minúscula. Cresceu e os anos encarregaram-se da sua conduta e dos seus bichos-carpinteiros.
- Já não tens idade para essas coisas, ó Jacinto.
Era o que os pais lhe diziam constantemente, apesar dos seus quase trinta anos vividos com a pressa duma prova de cem metros e o fôlego de um corredor de maratona.
Quando regressa a casa com a noite quase toda em cima da cabeça, o seu maior prazer é ainda o de trepar o velho limoeiro no quintal das traseiras da casa e entrar pela janela do quarto, para que ninguém lhe aponte o mostrador do relógio ao pequeno-almoço do dia seguinte. E isso é sinal evidente de que a criança inquieta e pouco dada a contemplações, coisa de adultos, ainda mora dentro de si.
Do limoeiro conhece cada tronco, cada bifurcação dos galhos e, salvo os mais recentes, todos os nódulos que o ajudam nas escaladas furtivas. Teria também criado com certeza laços com folhas e limões, mas as primeiras são caducas e os frutos fazem parte do consumo próprio da família, sempre que o destino ajuda, como a seguir verá.
Pelo Natal de há uma mão cheia de anos, era Jacinto um adolescente com os miolos em ebulição e formigueiros no corpo, quis transformar o limoeiro em árvore para a quadra festiva. Ligou fios, fez derivações, enroscou lâmpadas e, por fim, passou as gambiarras por entre os ramos, de modo a que quase nada ficasse por iluminar.
Erro seu. A potência foi demasiada e, se não disparassem os disjuntores, o curto-circuito teria feito do velho limoeiro um monte de carvão. Foi um Natal muito triste. Não recebeu prendas e ainda por cima passou a noite de consoada a ouvir recriminações.
- Nunca mais!
Resmungava, contrito. Mas tal arrependimento, ainda que saído das suas entranhas, tinha o valor que tinha.
Mesmo assim, a pior façanha foi no dia do seu décimo aniversário, alguns anos antes. Para acautelar a casa de moléstias e correrias desastrosas para os teres e haveres, a mãe montou no quintal o aparato para o lanche e deixou o Jacinto e os convidados à solta, descuidando assim da preocupação de os controlar ao centímetro:
- Dali não passam.
Não passaram. Do chão não passaram. É que o aniversariante teve a peregrina ideia duma batalha campal, consistindo no arremesso de limões, previamente colhidos para os apeados e a rodos para os emboscados nos ramos da polivalente árvore de fruto, entre os quais se incluía.
Resultado: duas cabeças partidas devido a quedas desamparadas, alguns ossos fora do sítio, rasgões, arranhões e nódoas negras avulsos. Foi o balanço.
Parabéns, Jacinto!
Atirou-lhe o pai quando à noite regressou a casa.
- Vejo que os anos não passaram por ti. Continuas o mesmo desassossego de sempre!
Jacinto ouviu o responso de congratulações por detrás da ligadura de gaze enrolada em volta da testa que quase lhe tapava os olhos, apesar de tudo vivos, mas naturalmente pesarosos:
- Nunca mais!
Balbuciou incomodado com os acontecimentos do dia.
Em tudo quanto Jacinto tocasse, reservada estava a bronca. Uma espécie de Rei Midas do avesso.
Chegou mesmo a convencer-se que os azares lhe aconteciam por uma fatalidade muito própria já nascida consigo. Às vezes, sentia como que um impulso, um sinal de alta-frequência imperceptível para os outros, que o impelia para a asneira. Melhor dizendo: para caminhos que conduziam à asneira.
Poderia ser até que os citrinos tivessem algum poder ou influência negativa, como acontece nos filmes fantásticos. Mas não. Quando lhe sopra aquela campainha de sonar na direcção do desastre, quase sempre escuta outros sons, mais audíveis por todos e de proveniência bem conhecida, que são as palavras premonitórias da mãe:
- Vê onde te metes, Jacinto!
Ele não vê. Quer dizer, não quer ver. A sua ideia prevalece sempre:
- Isto? É canja!
O que importa agora é que está revelada a sua grande preocupação, o complexo da asneira, serôdia, mas nem por isso de menosprezar. Torna-se urgente um diagnóstico rigoroso e sem concessões ao arbítrio, e a terapia adequada.
Dúvida não há quanto ao elemento comum a todas as encrencas: o limoeiro. O problema é o seu relacionamento com a árvore, se nos é permitido este modo de nos expressarmos. Cortá-la está fora de questão; apontar-lhe o caminho da rua, muito menos. Haverá mais pano para mangas no elemento racional. Ele mesmo. A solução estará portanto no seu comportamento e na forma de se relacionar com o velho companheiro de infortúnio, afastando todas as hipóteses que contrariem os choques, as aproximações impensadas e as leis da natureza. Foi esta a fórmula que o Jacinto desenvolveu durante meses.
Sempre que, por força do hábito, circulava pelas traseiras, ficava de olhar fixo no limoeiro, às vezes como se de um desconhecido se tratasse, outras procurando uma resposta que, evidentemente, a árvore não lhe dava, e, outras ainda, com o espanto de lhe sentir a presença forte e dominadora de todo o espaço do quintal.
Sabe-se lá quantos Jacintos deste mundo adorariam ter uma árvore assim perto de si? Para a acariciar, para lhe sentir a doce aspereza do tronco robusto, para usufruir, enfim, do sumo dos seus frutos com água e açúcar.
Quando se lida demasiado tempo com alguma coisa, ao invés de o amor crescer na mesma proporção, parece que mais se desdenha e descuida e só a sua ausência provoca de novo o sentimento de angústia pela falta que essa coisa nos faz.
Sem qualquer explicação ou motivo que levasse a um desfecho como este, Jacinto amanheceu Domingo de Páscoa pendurado pelo pescoço num dos seus ramos favoritos. Branco, distendido como um lençol, morto.
Nunca mais, nunca mais voltarei a falar disto.