quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A LUZ E A TREVA



O candeeiro da cidade

(o mais poupado da rua)

resolveu gastar a lua

em vez de electricidade.

 

havendo necessidade

e sempre que vê a lua

logo lhe chama sua,

mordomo da claridade.

 

Mas um dia, por maldade,

uma nuvem cobriu a lua,

enegrecendo a rua,

o candeeiro e a cidade.

 

Não sei se isto é verdade;

quem mo contou foi a lua.

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

EFÊMEROS



Era um rio,

um rio, que era todos os rios, de águas vivas

enfileiradas ao longo do caminho.

Às vezes um barco fazendo pela vida.

Nas margens, os salgueiros

inclinavam-se; faziam vénia e aproveitavam

para refrescar na água corrente os ramos mais afoitos.

O rio ia passando

tinha mais caminho, mais água à sua espera.

Algum tempo depois, nesse ou noutro dia,

o rio teria o fim anunciado, um mar imenso

onde não haveria mais falas sobre o rio

e aquela imensidão de água não contaria

senão para morrer dentro de si com o rio na barriga.

 

domingo, 17 de outubro de 2021

CANTAR DE AMIGO


O que me mentem as tuas mãos, quando acenas?

Sei lá se te despedes com ganas ou me dizes adeus,

com ares de exuberância imitada ou apenas

fátua negaça,  se me insinuas vem ou vai com deus.

 

Tenho dúvidas, tenho por traquejo muita dificuldade

em saber  se realmente me honras e me tens em alta

ou se apenas é comum em ti dar azo à vulgaridade

de adeusar quem fica e adejar a quem já não te faz falta.

 

Cobro o mesmo: sou amigo de quem sempre fui;

não precisas de fingir, nem te exijo esse empenho

e não tenho pretensões ao que do nada nasce ou flui,

mas apenas do que de amizade  por ti ainda tenho.


 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

FOLHAS DE OUTONO


Era a tarde do dia. Envelhecida

e gasta pelo Sol. De preguiça e sono.

Veio voando, caindo a folha amarelecida,

entre mim e o Outono.

 

Aos meus pés, a natureza morta

acenava, com serenidade, a despedida:

- Hoje bateu-me à porta

uma experimentada prova de vida.

 

Trazia o pó do caminho

(viver cria sempre esta poeira)

e aquietou-se ali, arrastando-se devagarinho,

despojada do verde-vida, uma vida inteira.


 

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A MOSCA NA SOPA


De vez em quando

cai-nos uma mosca na sopa,

que nós vamos levando:

- Se retirar a mosca ninguém topa.

 

Nova colherada de sabor inalterado,

não reclamamos à copa

para não aborrecer o empregado

e comemos a sopa.

 

Ma virá o dia em que a sopa sem mosca

está insonsa e está fria

e então vem a revolta tosca:

- Assim nem com mosca comia!

 


 

sábado, 2 de outubro de 2021

VOU COM AS ÁGUAS



Vou na água dos rios,

nas voltas que os rios dão;

vou nas águas,

de aluvião.

 

Por vezes as águas sossegam

chapinham mansas na margem

vou com elas

sem destino e sem portagem.

 

Vou com as águas de Março;

com as de agora,

de Outono, e todas as águas que correm:

toda a água corre, toda a água chora.

 

Na levada é que me entendo,

sem barco nem jangada,

vou correndo, vou correndo,

sem pressa de chegada.