sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VINHO NOVO



vinha vindimada     chapada rasa
  uva esmagada         vinho da casa

toalha estendida     mesa posta
        haja comida             quem não gosta?

vinho novo     boa cepa
grita o povo    de boca seca

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

PEDRAS


A pedra é cega: bate e fica
e se não ficar, o mais certo
é desabar. Não, não nidifica,
não se atém a alpendres, a coberto.

As pedras são como estrelas,
ou então projécteis ou balas:
umas, as que podemos recolhê-las,
outras, as que podemos atirá-las.

Pedra após pedra, é a natureza:
a pedra sustem a pedra até ver,
mais adiante haverá certeza
se é pedra ou terra o amanhecer.

domingo, 24 de novembro de 2013

FANTASIA 2


Não, mais fantasia não, que me causa sono e tédio!
A realidade, pelo menos, dá-me ganas, dá-me alento,
mesmo sendo o que é, pois não tenho mais remédio,
que combatê-la para não me desleixar ao sabor do vento.

Mas de fantasia chega: bastam os sonhos e quimeras,
bastam as ondas, os adamastores, e os cardumes de sereias,
que me atraiçoam e mais não oferecem senão esperas
de morte, sabem-no o meu sangue e as minhas veias.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

FANTASIA



Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:
busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…
e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,
já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.
Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,
me cega e convoca mais premente e mais fundo,
mais aquém donde começa; mais além donde termina.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

REDENÇÃO


Foi activado o relógio maldito
da morte. Findou a temporada
que, tendo máscara de infinito,
perdeu fulgor, não dá para nada.

Quem diz morte, diz fingimento,
diz rancor, diz raiva e malquerença,
se é que a farsa tem argumento
e nada é improvisado; em tudo pensa.

Matar a morte seria a solução…
mas matar o que é, em suma,
o que em vida é decomposição,
é matar tempo, que é coisa nenhuma…

domingo, 17 de novembro de 2013

CONTO DE NATAL


O meu tio Sebastião era uma daquelas figuras omnipresentes, cujo trato afável e bonacheiro
me envolvia numa espécie de almofada de sumaúma e me retirava palavras quase sempre de assentimento involuntário.
Admirava-me. Soube-o mais tarde. Das poucas conversas que estabelecemos, sendo dele o mote, quase não tive tempo para dizer algo coerente quanto desejava dar-lhe conta das minhas inquietações. Mas ele de tudo dizia saber e a sua presença parecia ocupar toda a casa, todos os lugares da casa. Esse era o meu constrangimento, o meu sufoco.
Era, segundo me dizia, admirador de Pessoa, da Mensagem em particular, e publicou sobre o tema duas ou três brochuras, que um dia me ofereceu com dedicatória carinhosa, como era próprio da sua postura tutelar. Afinal, estávamos em 1988 e eu tinha cinco livros de poesia editados. Penso que o meu tio me olhava como continuador de sangue nas artes da escrita… Em certa ocasião, por intermédio de um familiar comum e por altura do Natal, pediu-me que o visitasse com urgência pois iria regressar a Lisboa onde tencionava passar a consoada.
O meu desassossego perante tal convite só terminou já em sua presença, com o cheiro do azeite das filhós a pairar por toda a casa e de frente para uma enorme e confortável lareira de chão e de generosa matéria combustível.
Falou-me então da sua admiração pelos meus trabalhos poéticos, comparou-me a Alda Lara (poetisa que eu desconhecia naquela altura, cuja obra foi editada postumamente, mas que o meu tio terá conhecido nas suas andanças por Angola) e, a tal propósito, deu-me conta “do verdadeiro sentido que se oculta em expressões metafóricas e ambíguas, recursos que só a poesia admite e que só o verdadeiro poeta é capaz de utilizar”. Mais para o fim da conversa, lá veio então o conselho: “Mas tem cuidado, há coisas que não devem ser ditas, basta que se subentendam”.
Julgava eu ter ganho já aquele Natal quando, ao despedirmo-nos, me ofereceu o seu último trabalho em livro acompanhado de um forte abraço e uma nota novinha de cem escudos, desejando-me os maiores êxitos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

NOVO DIA


Será o dia que agora rompe e nasce
o que espero por uma vez ser o dia?
Com ou sem diadema o dia faz-se,
e que mais há que a véspera prometia?

Descrito o semicírculo, o dia morre.
Depois é noite, como eu por dentro,
tacteando o sangue que em mim corre
e desagua num mar de desalento.

Sejam anos-luz o dia que me espera,
seja o sol já gasto, perdido no escuro,
há-de ser um dia o dia e quem me dera
hoje mesmo chamar-lhe já futuro.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

AI MARIPOSA


Ai mariposa,
quanta heresia
há entre a prosa
e a poesia.

Se voares, garbosa,
é poesia,
mas se fores de fantasia
é prosa.

Definirei as loas
neste possível quadro:
poesia é quando voas;
prosa é se te guardo.

Ou então doutra maneira,
ao jeito da minha caneta:
mariposa é poesia inteira;
se for prosa és borboleta.

Esquece tudo, vai!
de nada queiras saber,
há gente que te chama butterfly
e eu apenas te quero ver…

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

ROMPER O CERCO



Rompo a campânula e dou o salto
o mais longe que puder, o mais alto.

Recuso a entrevação, a vida morta.
Então, vou arrombando a porta,

Com este marasmo desespero
e isso é que não, isso é que não quero.

Irei por aí, livre, talvez ousado:
- a senda há-de levar-me a algum lado.

Se não levar, se já não houver estrada,
deixem-me ficar, esperarei p’la alvorada.

E, pelo sim, pelo não, sigam. Parar é nada.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

PEQUENA FÁBULA



Vai longe o tempo (longa a vida)
em que jogava à bola na rua.

Um dia dei um grande salto
e atirei-a tão longe, tão alto,

que à minha bola perdida,
hoje lhe chamo lua.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DETRÁS DUMA MOUTA ESTÁ OUTRA


Mestres na arte da mentira,
exibem-se, sazonais, alternativos.
No fim, o que um dá outro tira
e pedem graças por estarmos vivos.

Mas as contas fazem-se no fim
- vai no meio a procissão -
sem lugares para os assim-assim,
veremos quem tem razão,

se o bando de bufarinheiros,
troca-tintas, agiotas, malteses,
judas por trinta dinheiros
ou somos nós, portugueses.

domingo, 3 de novembro de 2013

FORA DAQUI!


Estes, que de espontânea geração
se implantaram de unhas afiadas,
sem pátria, rosto ou nobre condição,
erguem barreiras, intransponíveis paliçadas,
a mando de medonhas divindades
e novíssimos coios emergentes.
Se for o caso, faremos as nossas barricadas
e mandaremos até tocar trindades,
armados de mil razões e alma até aos dentes.

Acabou o tempo, cães imundos!
não há mais lugar para indulgentes elogios!
Enquanto é tempo oiçam nos gritos profundos,
o repúdio, as vais de revolta, os assobios,
que não queremos saber mais de novidades
da morte que em vós nos vai matando
ou impostos falsamente vitais e urgentes.
Nós somos daqui em todas as idades,
feridos, é certo, de quando em quando.
De mais a mais, fartos de incompetentes.

sábado, 2 de novembro de 2013

RESISTIR


Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.

Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.