quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

PLÁTANO

O velho e robusto plátano cedeu enfim

a sua última folha rosada deste outono.

Deixou-a no triste adeus de abandono;

ficou a árvore, perjurando a morte; o fim.

 

Não cede a árvore pela mão da natureza 

mais que as folhas consumidas, outonais:

cede ao tempo, a invernias e vendavais,

nessa luta mais não dá, mais não despreza.

 

Dos galhos secos, agora desfolhados,

despontarão flores e frutos renovados

e o seu esplendor voltará com então era:

 

Será de novo a sombra dos desabrigados,

exemplo de robustez e porte elogiados,

não agora: só quando voltar a primavera.


 

sábado, 26 de dezembro de 2020

ÀS VEZES UM MAR


Há dias em que um mar em mim se revolta;

outros, em que adoça como um favo de mel…

Há dias em que o mar que invento à solta

não é mais que um rascunho em papel,

 

seco, sedoso embora, mas seco como palha.

Banha-me falsamente, cobre-me de iodo,

faz-me naufragar quando calha

e atira-me contra as rochas de mau modo.

 

E o mar sou eu, quase nunca navegável,

à vez revolto e calmo; denso e transparente,

que tanto pode sublevar-se como ficar estável,

próprio de sermos mar e sermos gente.


 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

LUSA GENTE



Aquém da lágrima, longínqua Taprobana,

Que nos resta de tão intrépidas aventuras,

Senão à luz de velas, a pobreza franciscana

Que ilumina ainda a gesta de tais venturas,

Mitos, lendas, que são da competência humana,

Como é o trabalho insano e as demais agruras,

Aqui fomos ficando, o mar desfeito em sal,

Neste reduto magoado a que chamamos Portugal.




 

domingo, 20 de dezembro de 2020

A CAMINHO, SEMPRE


Simplificar, omitir, o mesmo é tomar atalho;

andar às voltas como as pás de um moinho

(e tal não é para desfazer do seu trabalho),

serão de quem tiver esse trilho por caminho.

 

Nunca estarei tão longe, que não fique perto

de onde quero estar, mas jamais parado:

o caminho é sempre longo e nem sempre certo,

mesmo que o perto e o longe morem lado a lado.


 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

GLOSA DO TEMPO



Primeiro vieram os comentadores desportivos

mas como o desporto para mim é para praticar

e não para dar à língua, nunca lhes dei atenção.

Ainda as chuvas davam os primeiros sinais

de mudança climática e aí se perfilavam

os comentadores da seca. Nada faziam,

apenas gastavam saliva e ameaçavam com a extinção

do planeta para o dia seguinte, para a década seguinte.

Quase todos queriam notoriedade e não os quis ouvir.

Depois vieram os comentadores de incêndios florestais:

almanaques de contrafogo e ordenamento territorial,

que nunca saíram das gavetas. As suas vozes queimavam

e eu ardia em impaciência ano após ano.

Finalmente chegaram os comentadores da pandemia:

conhecem o vírus, as línguas que ele fala;

elaboram estatísticas e mapas cromáticos, confinam-me.

Tentei inteirar-me o mais que pude e entrei nos sins e nos nãos

do comportamento aconselhado… e depois banido.

Agora é tarde e todos os poros do meu corpo se arrepiam de medo.

Integro uma lista algures que não conheço.  




 

sábado, 12 de dezembro de 2020

AS COISAS POR DENTRO



As coisas por dentro,

de tudo o que tem fora

são, digamos, o centro,

a alma de quem lá mora.

 

Vide, em formato digital,

qual colonoscopia,

a árvore de Natal

na Devesa, em plena pandemia.

 

E talvez dissesse O´Neill

desta e de coisas tais,

por dentro ou e perfil

para todos “bons natais”…


 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

ÁRVORE DE NATAL


A ventania de ontem à noite

tombou uma azinheira centenária, em frente da minha casa.

O fôlego da tempestade,

em contraste com o seu já débil alento, 

foi superior às suas forças. Respirava ainda quando a vi:

arrastando a ramagem

e os escassos frutos no chão molhado,

suplicava o impossível conserto da sua coluna vertebral.

Não chorava – tanto quanto eu pudesse perceber – suplicava

a mão, o gesto ou apenas o olhar

a quem sempre a julgou eterna e eterna haveria ser

depois de nós e ainda dos que viessem.

Com um dos ramos tocou-me ao de leve.

Pareceu-me uma carícia, um aceno

ou o desejo de lançar nova raiz,

agora que a morte tornava inevitável a remoção.

Aceitei o ramo como presente.

A velha azinheira ofereceu-me a sua eternidade. 


 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

DAR A MÃO


Por vezes dávamos as mãos e tínhamos prazer

na mão que abraçava a nossa, quente ou fria,

que nos alterava o sentido ao movimento,

ao arrepio do corpo, aos hábitos da alma.

Por vezes dávamos as mãos e o sangue corria

de uma para outra mão, como se os corpos unidos

fossem uma alma só, um fluido de ilusão

adormecido nos dedos, nos medos da criação.

Por vezes dávamos as mãos e tínhamos prazer. 


 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

PEIXES



Nunca escrevi sobre peixes. Prefiro a elegância dum par de asas

ao tremor constante das barbatanas. Não o digo por desdém,

por mero capricho. Outrossim, com as pálpebras de água rasas,

porque adoro os oceanos, os rios, tal como o céu do meu vaivém.

 

São elegantes, os peixes e as escamas dão-lhes luz e graça,

se mais não dessem, e toda a agilidade na água onde prosperam.

Às vezes, junto ao rio, detenho-me quando um cardume passa,

o meu desejo é tocar-lhes mas eles esgueiram-se e nunca esperam…

 

Pioram as coisas em águas turvas, altera-se a emoção.

Qual aquário, qual cardume, qual anfíbio, ágil marujo!

Se o dito é daqueles que nunca se dão por saciados, um tubarão,

então não me esperem contemplando as águas, porque fujo.