segunda-feira, 29 de abril de 2019

AS PEDRAS E AS FLORES


Deram-me há pouco uns seixos matizados, na verdade
com pequenos veios onde outros seixos viveram,
para que fizesse um poema, todo em pedra,
sem qualquer aresta capaz de magoar as mãos do tempo.

Impossível, disse. Recusei amavelmente o desafio:
a poesia não faz milagres, apenas junta as pedras polidas
ou rugosas e atira-as à indiferença, aos lugares muralhados,    
se magoarem, se as mãos do tempo sangrarem, tanto melhor.

Ofereçam-me flores vermelhas; cravos ou papoilas, tanto faz,
e não precisam pedir que as ame, porque é o que farei;
é o que sempre fiz, porque dão cheiro e cor à poesia,
enquanto eu resistir com uma pedra à mão, de pedra e cal.

sábado, 27 de abril de 2019

BORBOLETA


Não sei como o fez ou de onde ela veio,
apenas sei que lhe poisou no nariz,
a mariposa que, elegendo o feio,
voou, escolheu por si e fez o que quis.

Lá saberá o que faz, a linda borboleta
mas, por aferro poisando à toa, aqui e ali,
arrisca ser vítima e jamais vedeta,
ser pelos outros estrela e não por si.

Mal por mal, o poiso é bicho garnachão,
ocioso, metade alarve, metade louco,
vale o maior cuidado e precaução:
brincar assim, todo o cuidado é pouco.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

VERDADE NUBLADA


É fácil falar do Sol, falar da Lua,
mesmo quando as nuvem prevalecem
estão lá, a verdade é nua e crua;
dúvidas que hajam, logo se desvanecem.

Difícil é saber o que se esconde
detrás duma palavra a descoberto,
o que encobre, o como e o onde,
o que quer dizer de errado ou certo.

E sendo, por fim, tida por verdade,
apuradas as ciências componentes,
chegará o dia em que mais não há-de
senão mentir com quantos destes…  

domingo, 21 de abril de 2019

ABRIL DE NOVO


Aos olhos de um homem são
vem Abril e subsiste o dilema:
se é o travo amargo da desilusão
ou o cravo que ponho no poema.

Persista a constância de lutar
e a flor que for terá a cor precisa
de um cravo vermelho a ondular
na mão mais limpa e mais concisa.

A seu lado um filho pela mão,
que é tudo quanto ao futuro doa,
um filho, que é fruto do coração,

e que aos poucos cuida e afeiçoa
como semente de nova floração,
esse, que é o cravo puro em pessoa.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

DA SORTE


Em 1988, quando publiquei Alegria Incompleta, ed. Vega – merecedor, pela APE, do Fundo de Apoio à Edição de Autores Portugueses, apoiado pela Gulbenkian e em cuja recensão, na Colóquio Letras, Fernanda Botelho me haveria de me apelidar de “poeta do coisismo” – ter-me-ei esquecido, ou por ventura preterido (não me lembro) o poema “Da Sorte”.
Andou o dito pelas gavetas, em vinha d’alho mais de 30 anos, inédito, e que agora encontrei e vos mostro. Acresce que a pontuação é de hoje, porque na altura não a fazia.
Por que o mostro passado tanto tempo? Apenas porque lhe achei graça. Só isso.     

                                  ***

Há dias caí ao mar ou caí em mim no mar,
que eu não sou de me atirar assim
sem mais nem menos, e vi a coisa tremida.
O mar não me largava. Fiquei emaranhado
na sua enorme cabeleira e é o sais!

Foi então que me agarrei à barbatana
de um peixe que a sabia toda e me quis comer…
Não teve essa sorte, porque eu não fui na cantiga
e resolvi acender o candeeiro eléctrico
da mesinha de cabeceira antes dele o engolir.

Costumo sempre usar este truque quando
as coisas se complicam e fico à rasca.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

IMPROVISOS




Em seus anos verdes
as flores imaculadas,
são o acne das paredes

azuis, encarnadas…
que cores, que sedes?
As flores renovadas.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

ELE É COMO UM CÃO


De cá para lá,
como um cão,
ao deus dará
vai o figurão

a velhas urinas,
a sinais de cio
deita as narinas
de fio a pavio.

Ladra, não morde
a fazer de conta,
pedigree de lorde,
a ver se amedronta.

Já mais não pode
neste ir e vir
diz quem me acode
e sai a ganir.

(Se alguém achar
que não é de cão
que estou a falar
tem toda a razão)

sábado, 13 de abril de 2019

FORA DAQUI


Estes, que de espontânea geração
se implantaram de unhas afiadas,
sem pátria, rosto ou nobre condição,
erguem barreiras, intransponíveis paliçadas
a mando de medonhas divindades
e novíssimos coios emergentes.
Se for o caso, faremos as nossas barricadas,
acudindo ao toque das trindades,
armados de mil razões e alma até aos dentes.

Acabou o tempo, cães imundos!
não há mais lugar para indulgentes elogios!
Enquanto é tempo oiçam nos gritos profundos,
o repúdio, as vais de revolta, os assobios,
que não queremos saber mais de novidades
da morte que em vós nos vai matando
com imposturas ditas urgentes.
Nós somos daqui em todas as idades,
feridos, é certo, de quando em quando.
De mais a mais, fartos de incompetentes.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

O CAMINHO DAS ÁRVORES


As árvores fazem o seu caminho,
evadem-se, fogem ao cativeiro…
As árvores nunca fazem ninho,
Inquietas, de espírito aventureiro.

Rompem a terra, a pedra dura,
que levam à vez e lentamente,
pois nada sabem de agricultura,
mas de vida aprendida na semente.

Como um rio, levam de vencida
as pedras que houver para levar
à força bruta, uma vez alvorecida,
descanso e sombra? – Só de ouvir falar…

terça-feira, 9 de abril de 2019

PALPOS DE ARANHA




Passam-se coisas estranhas
ou, pelo menos, esquisitas:
na casa dos parasitas
anda tudo às aranhas,
salvo as ditas.

Passando aos pormenores,
há os que por acaso mero
tecem teia a partir do zero:
aracnoexploradores,
salvo erro.

Usando de baba e peçonha,
são servidos de bandeja
mesmo que a gente não veja
por outros bichos sem vergonha,
salvo seja.

domingo, 7 de abril de 2019

NESTA ILHA DE CRETA


Ao princípio tive um mal-asado voo, mas desejei
ter um par de asas que me criasse a fantasia de voar.
Fingi tê-las e fingi também voar, imaginando-as apenas…
Nesse tempo, ninguém reparava o quanto eu fingia.

Agora voo com maior agilidade, ganas de avião de papel,
quando vierem as asas já não serão necessárias,
dir-lhes-ei, lá bem do alto dos céus, que não vale a pena,
que houve mudança de planos. Cortavam-mas, se as tivesse. 

sexta-feira, 5 de abril de 2019

A DANÇA DAS ÁRVORES




É na penumbra que acontece,
quando o vento alonga os braços,
e antes que a brisa cesse
ensaiam os primeiros compassos.

Depois da folha, depois do fruto,
que é a devolução da semente,
depois do inverno e do luto,
as árvores dançam, finalmente.

Não daremos conta, porém,
que não é música para os ouvidos;
o que as árvores dançam provém
de outros diferentes sentidos:

O pé de dança é a raiz da vida,
que sobressai, e devagar avança…
Sacode os ramos, e de seguida
embala, como fazemos em criança.


quarta-feira, 3 de abril de 2019

À LUZ DOS OLHOS


Às vezes pressinto que posso ver-te, e tudo não passa
de uma ilusão de néons e raios de sol imaginários…
Pequenas luzes intermitentes, o cio dos vaga-lumes,
e em redor a noite calma, silenciosa e escura.

Além, um farol em movimento constante…
Permanece a treva, o manto de nevoeiro, agora tão negro
como a noite à sua volta. Mais nenhuma luz,
céu e terra conspiram para que nada exista em redor,

a não ser aquele ponto reluzente, ao longe,
que finjo acreditar ser a Estrela do Norte,
e se o for de nada me serve a ousadia do seu brilho,
de nada me serve a oferta a anos luz de mim.

Quando a luz vier haverá um manto de negrume
para a receber de braços abertos. A claridade possível.
Então saberei de onde vem, que abertas a permitem
e a falta que me fazem os teus olhos olhando os meus.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

ESCADAS MONUMENTAIS


A vida é uma enorme escada
onde se sobe ou se desce;
também pode ser vida airada,
variante que também acontece.

Descontadas as horas mortas,
a moina, se o corpo é de ferro,
mais as direitas linhas tortas,
é sempre superior a zero.

Serei doutor custe o que custar
e faço já aqui uma promessa:
não pararei de estudar
até que as suba ou que as desça.

Que mais não seja às cabriolas,
de capa em jeito de mariposa,
saudado por todas as escolas
e puxando monumental raposa.