segunda-feira, 30 de março de 2015

PÁSSAROS


Canta o pinta
roxo
(parece-me ouvi-lo)
o pinta
silgo tem outro estilo.

Ao pinta
inho, é difícil imitá-lo
enquanto o pinto
não for galo.

Todos cantam que dá gosto.
Salvo o pardal:
de desgosto,
veste de cinzento, anda mal
posto.

sábado, 28 de março de 2015

O GALO


Ei-lo, o garboso capão,
despertador de janela,
puro sangue, quando não,
palatável cabidela.

Tanta qualidade ele tem,
nem vale a pena gabá-lo:
senhor de todo um harém,
que é preciso ter galo.

quinta-feira, 26 de março de 2015

POEMA ECOLÓGICO


Cheiro todas as flores que perfumam as manhãs,
como a maresia, o sol, a terra e o fumo dos casais.
Todos me alimentam; todas são minhas irmãs,
quanto mais me quero e transfiguro, quanto mais.

Quanto mais cheiro, ao raiar do sol, o que desponta,
mais me sinto terra, água, elemento vivo e natural.
Se acaso este dom se esgota, será de pouca monta;
pior será se toda esta fragrância tiver destino igual.


terça-feira, 24 de março de 2015

PONDERAÇÃO


Falei sim, de bravura
para enfrentar a fera,
mas não falei de loucura,
que exaure e desespera.

De coragem, quanto baste
como na morte o seguro,
não vá acabar em desastre
o que era p’ra ser futuro.

domingo, 22 de março de 2015

URGÊNCIA


Gente faminta da fome que é nossa:
dela estamos fartos até ao pescoço,
que enquanto come não se coça,
como sete cães a um osso…

A fome não é característica dos vencidos;
é contratempo, razão e necessidade.
Só a desistência e a morte são definitivos…
Todo o resto sobrevive, se o coração arde.

sexta-feira, 20 de março de 2015

À CHUVA


Às vezes chove e eu vejo essa água molhar-te,
impiedosa. Na cidade é assim: a chuva molha
cruelmente as pessoas, desfigura-as
até se confundirem com a desumana chuva.

Aqui, na horta que frutifica na minha memória,
é uma bênção. Podia chover o ano inteiro,
que seria sempre bem-vinda a água. E mais não digo,
enquanto não estiver completamente enxuto.  

quarta-feira, 18 de março de 2015

GOLPE D'ASA


As palavras são atalhos sinuosos
e nem sempre nos levam onde queremos ir.
As asas sim, as asas fazem-nos sonhar
com palavras certeiras,
mesmo quando não são pronunciadas.
- Ensino-te a dizer sol e água, vento e lua cheia,
em troca ensina-me a voar.

(O pássaro não me entendeu:
ele não fala e eu não voo, ainda.)

terça-feira, 17 de março de 2015

O FIM DAS ÁGUAS





Mais tarde ou mais cedo, o dia terá o sol
que lhe é devido. A sombra deixará de ser eu
e passará a ser a minha sombra
e à sombra de mim hei-de plantar uma flor.

Vermelha, que é a cor que eu mais gosto,
capaz de um sorriso afável ou de um grito,
depois, bem, depois secarei todas as águas,
todas as mágoas e as lágrimas mais teimosas.

domingo, 15 de março de 2015

PAUL ÉLUARD


As estatísticas revelam que a France Presse
e mesmo a Reuters te citam apenas uma vez
por cada duas em que comentam ou evocam Apollinair,
meu caro Paul Éluard, ou Grindel, como quiseram
que fosse o teu nome de família.
As estatísticas só servem para indignarem
aqueles que gostam de ti,
talvez porque não queiram arrebatar à morte
a tua visão da vida, e tu deixaste de gritar
no ano em que eu nasci, há sessenta anos, Paul.
O teu combate, a tua dor, a tua voz e o teu amor
nos poemas que me debruavam os lençóis 
de adolescente sobrevivem ainda hoje
na minha memória crítica e lúcida como os teus versos.

sexta-feira, 13 de março de 2015

ALBERTO CAEIRO


Ontem encontrei Alberto Caeiro.
Tinha um ar comisero, pesado,
os olhos ardiam-lhe, quase em chama.
Lia Cesário Verde e as lágrimas
corriam-lhe como a uma criança.
Arrastava os versos do mesmo modo,
parecendo carregar os últimos cestos
da vindima, onde Cesário
tossia do princípio ao fim.
Não reparou em mim e ainda bem:
não iria dizer-me nada que eu não soubesse já;
nem as suas lágrimas
seriam mais verdadeiras do que os meus versos.

quarta-feira, 11 de março de 2015

ROGO


Saudosa primavera! Insistente prazer da ilusão!
Placebo consentido e sem sentido acarinhado
como a ternura de uma nuvem, um alvo chão
macio, morno, lençol branco e imaculado…

O meu pedido é breve, não chegue o verão
e queime de vez este embalo outorgado:
apenas uma árvore de fruto doce e temporão,
uma nuvem probatória do tempo já passado.

segunda-feira, 9 de março de 2015

SONHEI QUE...


Entre quase nunca e quase sempre,
o truque para escolher a frase
é simples: basta perguntar sempre
que tamanho tem o quase.

Já para saber como avalio
(o que nem adianta nem atrasa)
se é meio cheio ou meio vazio,
é conhecer o dono da casa.

Dito nem oito nem oitenta
ao exagerado, teimoso, convicto,
se o oito cai, não aguenta,
assim temos o início infinito.

sexta-feira, 6 de março de 2015

VELA



Agasalha-te meu pequeno, pode a noite gelar…
Pode até nem fazer falta, meu menino,
mas no meu coração  de te velar
haverá sempre cuidado e uma porção de mimo.

E se a noite, como penso, vier fria
dormirás bem, acordarás com força redobrada
como este coração, a cada novo dia,
por ti batendo, enfrenta o frio da madrugada.

quarta-feira, 4 de março de 2015

UM VELHO SOM


Um som já velho, reciclado,
vira o disco,
não sei onde ouvi isto.

Fede. Velho e relho, insisto,
percorre o tubo enviesado
este som antepassado.

Que som este, estafado,
de notas falsas, um misto
de purgatório e Jesus Cristo.

Como a sensação do já visto:
na música o mesmo fado
e na letra o caldo entornado.

segunda-feira, 2 de março de 2015

O TROCA-TINTAS


O que imita mas não faz
e, sem bola, faz fintas,
dizem que é bom rapaz,
para mim, é troca-tintas.

O que dribla a conversa
e te pede a ti que mintas,
ou a coisa está às avessas
ou este é o troca-tintas.

O que diz que a verdade
é uma mentira com pintas,
não te iludas. Na realidade,
é o próprio troca-tintas.

Ainda assim, há remédio
sem ter que ficar aflito:
acaba-se-lhes com o assédio
trocando as voltas ao dito.