terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

DO CÃO E DO LOBO


Sabemo-lo, conhecendo a natureza,
mas não será demais dizer de novo:
ao eleger entre predador e presa,
não é por uivar que o cão é lobo.

Porém, vista tese por outro lado,
temos que, pela mesmíssima razão,
por mais que o lobo dê ao rabo,
não é, nunca será um cão.

Lobo é lobo, cão é cão
e ambos, macacos de imitação.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

RAIZ


Não, não foi para alimento
que a semente deu a árvore, a árvore a flor
e a flor o fruto.
Tampouco para serem vistos ou tocados,
não foi para isso
que vieram em nosso socorro,
âncora dos nossos desvarios:
são de outra raiz…
Se aprendemos a consumir os frutos,
cheirar as flores e cortar as árvores
à sombra da sua imutável quietude
é porque não estamos à sua altura.   

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

MEMÓRIA FUTURA


A ideia de me encontrar num futuro remoto
não está completamente posta de parte:
eminente  vate, rotulado de coisista, morto,
não se sabendo ainda se todo o verso é arte.

De uma coisa, pelo menos, tenho a certeza:
ninguém vai encontrar por ali a poesia,
que o legado em versos é somente natureza,
enquanto a dita, com o poeta morreu um dia.

Aplaudam, no entanto, a mágica composição
de usar palavras comuns –sombras e ardis –
e com elas tanger as harpas do coração.

E interpretem, tomem-nas em mãos, como se diz,
e cantem-nas como se fosse vossa essa canção,
que também foi para isso que um dia a fiz…

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O MOINHO


Roda ao vento, o moinho
tão majestoso e tão só,
gemem as pás de mansinho,
vai fazendo o trigo em pó.

Roda o engenho da roda,
vai rodando sem parar,
o tempo que a vida toda
se gasta na vida a rodar.

Roda a mó com lentidão
em seu laborar fecundo,
e roda o moleiro p’lo pão,
que fará rodar o mundo.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

DEBAIXO DA PONTE


Em noite sem nuvens é vulgar
ter no céu por horizonte,
o brilhante esplendor do luar.

Incomum, se queres que conte,
é a lua indigente pernoitar,
minguante, debaixo da ponte…

sábado, 17 de fevereiro de 2018

CHUVA


Esperada como um presente,
uma gota ou quase nada
já é mais que suficiente.

A chuva miudinha, insistente
e fria como agulhas afiadas
encharcou de água a gente,
incluindo a mais precatada.

Sorriram frutos e flores
mas o melhor que aconteceu
foi o oiro caído do céu
em brilhantes furta-cores
somente porque choveu.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

A NEVE


Às vezes nevava.
O céu oferecia a neve para poder entrar na folia,
como qualquer de nós cedia a bola para entrar no jogo.
Os dedos só gelavam nos primeiros instantes.
Daí a pouco tempo, as mãos ardiam como brasas.
Às vezes nevava.
Era um lençol branco e imenso, quase sem limites.
Mesmo assim, alguns levavam braçadas de neve para casa,
na esperança de que assim não derretesse.
Uma qualquer espécie de alquimia
haveria de conservar o gelo
e transformá-lo em miragem perene e mágica,
para íntimo deleite.
Às vezes nevava.
Fazíamos anafados bonecos com apêndices postiços,
bolas de arremesso,
construções que a imaginação
e a quantidade de gelo permitiam,
escorregas improvisados.
Às vezes nevava
sem sabermos muito bem porquê,
nem o préstimo de tanta alvura.  

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O BURACO


Se fosse borracha…
não digo que não;
assim não encaixa,
conta a intenção.

Intenção forçada,
solução à pressa:
já não há calçada
antiga, portuguesa.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

CACOFONIAS


Ela lá e ele, do lado de cá,
disse olá.
Fez eco lá; ouviu ela acolá.
É boa, olá lá.

O constant’ hino
tocado sem destino
troca o tino
do cretino, a’rmar ao fino:

(“lavamos catandirrindo
levados, levados, sim…”)

Dirão na morte a perda,
oh morte inesperada!
De mim ninguém m’herda
Nada!

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

UM DEUS EM CONTA


Vendem por aí um deus barato,
pelas almas. Um deus único
em prestações, sem defeito,
com livro de instruções.

Um deus perfeito. Valha-me deus!
Eterno, enquanto durarmos nós,
por um dízimo vitalício,
que para acionar basta ter fé.

A cada esquina aí está:
de barba branca e alvoroçada,
mas não se pense por isso
que é saldo ou de contrafacção.

É bom e mau, conforme o uso.
Não dorme nem come.
É um deus de vento, etéreo;
um deus para os últimos dias.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

ANEXIM QUEBRADO


Quem não come
não precisa de pratos,
nem de aparatos,
cristais, azulejos;
contudo
quem tem fome
come de tudo
menos beijos.

Mais digo eu
de quem come
a dobrar e sem fome
só por desejos,
gula ou desdém,
não come o que é seu,
mas o de alguém,
incluindo os beijos.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

AVISO SOBRE A EVOLUÇÃO


Se tudo está no ADN,
por que razão o vil metal
(euro, dólar, iene…)
nos dá condição animal?

O velho truque da cenoura
colhe em qualquer idade
e, de forma duradoura,
com base na propriedade.

É fácil a explicação:
esse, chamado capital,
tornou este mundo cão
no pecado original.

Mas não há povos sem povo
e esse, com toda a razão,
não sai de qualquer ovo
posto pelo amo ou patrão.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

PELAS MINHAS CONTAS


Ocorrem-me pensamentos sábios
e pelas minhas contas, o que vejo?
Que os nossos quatro lábios
se podem transformar num beijo.

Mas tendo, enfim, alguma perícia,
no aproveitamento do espaço,
se transforma uma carícia
num longo e terno abraço.

E da química, que digo dela?
Sabendo bases e sais de cor,
também posso conseguir com ela
todas as graças do meu amor.