sábado, 30 de maio de 2020

DIALÉCTICA


A verdade anda na rua:
vai e vira, vai e vira,
a verdade nua e crua,
que até parece mentira…

A passo lá vai a verdade
enquanto o tempo não expira,
arrastada pela idade,
já foi verdade e é mentira.

O que faz a mentira verdade
e a verdade ser mentira
é o prazo de validade
que ambas têm por medida.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

VERSOS DA FELICIDADE DOMÉSTICA


Debaixo da mesma bandeira,
qual arco-íris de luz e cores,
o tempo mantem-se no Continente e na Madeira;
menos uma hora nos Açores.

Se tem cura, que deus o guarde;
se peca, que deus seja complacente.
Mas se deus não releva, quando já é tarde,
não passa  de adjectivo omnipresente.

Meias verdades, mentiras, louvaminhas e cantigas,
aqui, onde é bom de ver,
são virgens todas as raparigas
até deixarem de o ser.

terça-feira, 26 de maio de 2020

O AVÔ RELOJOEIRO


Para o avô Sousa, relojoeiro,
a contas com o tempo em fracções,
a cada qual com seu ponteiro
dava números às ocasiões.

Se a vida corresse p´ró torto,
impondo forçado jejum,
pobre de quem, vivo ou morto,
mas que grande trinta e um.

Tudo afinado ao segundo
batiam horas, tocavam campainha
relógios de todo o mundo
era o trinta por uma linha.

Naquele vacilava uma donzela
e num outro, um cuco afoito
apregoava as horas à janela
de nos fazer a vida num oito.

Porém, se não tivessem conserto,
e perdessem serventia
iam pregar para o deserto,
dar as onze ao meio-dia.

domingo, 24 de maio de 2020

AI AS DORES


Não há palavras poéticas
nem ais de mim que não sejam
figuras de estilo patéticas,
que mordem enquanto beijam.

Beijos na face ou na testa,
aqui não entra o amor.
Quando muito, pequena festa:
ai os ais, ai esta dor…

Ai das dores que me consomem
e desta vida de cão;
ai dos filhos que não comem,
ai das tripas coração.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

DOS IGUAIS


Geminar peça por peça
em modelo, altura, condição,
por muito que se pareça,
iguais é que as partes não são.

Semelhar-se já é diferente;
dá ares, sai ao pai ou à mãe,
pois se até o espelho mente
como confiar em alguém?

Nada é igual, parecido seja,
tudo é distinto a seu modo,
por muito igual que se veja
nem as metades de um todo.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

LUGAR EM SÍNTESE



Há dentro deste lugar
outro lugar mais pequeno,
que estando no mesmo lugar
tem o seu lugar em pleno.

E há outro lugar ainda,
de maiores dimensões,
numa espiral que não finda
em volumes e proporções

Por exemplo, este lugar,
quantos lugares contem?
Tem o seu, no seu lugar,
e todos os que o lugar tem…

segunda-feira, 18 de maio de 2020

CHUVA


Não tem mesmo graça nenhuma,
a chuva e, se alguma tivesse,
uma, apenas uma,
era que a chuva não chovesse.

Mas chove, e o que é pior,
molha o que não deve.
Diz que é bênção e favor,
mas o que ela diz não se escreve…


sábado, 16 de maio de 2020

DE CASTELO BRANCO


Estive sempre de frente, Castelo Branco,
já te disse tudo o precisas e o que não gostas;
foi no teu chão que me fiz gente, vou ser franco:
fico triste quando aos teus viras as costas.

Sem ressentimentos, nada de queixas, azedumes,
apenas me entristecem as provincianas vaidades,
os sorrisos falsos, as meias verdades, os ciúmes,
mas nada que mate, que não te eleja entre as cidades.

Das Águas Férreas até à Mina, caminho antigo,
até ao cruel betão a que aderiste, as novas avenidas;
nada tem segredos, nada que me indisponha contigo.
O berço e a matriz é que nos pregam estas partidas…  

quinta-feira, 14 de maio de 2020

O POEMA


Podia ser flor
pedra
ou somente um par de asas
de um poema antigo
podia ser laranja
gomo a gomo
esse é o meu segredo e não o digo

terça-feira, 12 de maio de 2020

À JANELA


Quisera abrir uma janela
de onde avistasse um jardim
e eu pudesse através dela
em vez dele ver-me a mim.

Mas já entardeceu e a vida,
que agora serve de espelho,
tem na imagem reflectida
um tronco curvado e velho.

domingo, 10 de maio de 2020

SOBRE UM POEMA


O poema não molha, não escorre;
a poesia discorre, percorre a tormenta;
encharca os ossos, o esqueleto do tempo,
até que os versos, já enxutos,
se derramem, como fazem as lágrimas
por chorar, quando ficam presas
à garganta magoada e seca.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

PROCLAMAÇÃO


As flores não pedem palmas;
pedem água e pedem sol.

As palmas são efémeras, voláteis,
mesmo para os poetas que ousam escrever
os seus versos;
enquanto as flores são sempre flores
se pensarmos nelas e lhes guardarmos o aroma.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

ÚLTIMA HORA


Informação, a que for certeira
digo, conforme a acta, que enforma
e é esse pormenor subtil que torna
a notícia verdadeira.

A notícia é o rufo do tambor
explico melhor: uma verdade contrafeita
escrita por gente eleita
seja lá ela o que for.

Serve-se fria, a jeito
e quem julgar que enforma é erro de ortografia,
fica na concha e se fia,
mude de jornal, com efeito.

Que tenha um bom dia e bom proveito.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O DIA SEGUINTE


Ainda bem que estão aí.
Nada. Não é por nada. É somente por saber
que ainda estão aí.
Até agora, as guerras acabavam por satisfazer
uma das partes em confronto
e pela primeira vez assistimos a um conflito
em que todos se acham vencedores,
apesar de continuar a haver exploradores e explorados
por mais algum tempo.
Não foi exactamente uma viagem em comum
o que fizemos no mesmo barco.
É um pouco assustador, não acham?
Veremos se acontece o mesmo com o espólio…

Ou talvez eu seja demasiado pessimista,
poeta, quase sempre.
É provável que uma qualquer tristeza súbita
não me deixe ver a realidade que oiço,
que realça as mazelas e as baixas
e as dores da alma que isso traz consigo.
Mas ainda bem que estão aí.

Vi muito jogo sujo;
os que serão sempre coveiros
e os que ostentam aureola de santo
e são coveiros também.
- A sociedade cria estes elementos
para que os outros cidadãos
se achem merecedores de elogio –
e voltaremos a sujar as mãos porque é hábito nosso,
porque a qualidade que nos distingue
é também o nosso principal defeito:
(custa-me dizê-lo neste momento, isso é incontornável)
somos humanos e assim continuaremos.
Ainda bem que estão aí.