terça-feira, 31 de dezembro de 2013

POEMAR

Termino o ano com Miró e João Corvo, meu poeta de eleição

Todas as manhãs acordo com a incómoda veleidade
de escrever o poema duma vida.
Aspiração patética e vã: a poesia não é determinável!
Nasce nos olhos, percorre as veias, anda por aqui
saltitando como uma corsa em tempo de cio,
oferecida ao impulso masculino da preservação da espécie:
mentiras rebuscadas, arredondadas, rimadas…
A poesia vai no sangue e não consigo estancá-la
para vos mostrar o poema da minha vida,
para vos dizer o poema que tenho em mim,
para vos poemar o que nunca explicarei convenientemente.

Não é fácil suster o ímpeto de dizer
tudo aquilo que o poema leva dentro
e eu dentro dele ou ele dentro de mim.
Primeiro vêm as águas – umas feitas de violentas ondas,
outras quase riachos à procura da foz,
que os liberte enfim da opressão das margens –
Depois, tudo acalma e se transforma em bolas de sabão…
As palavras chegam por fim. Enxutas, buriladas,
mas nem sempre exactas; raramente verdadeiras.
Às vezes são como um sol brilhante e quente e outras
não  passam de pequenos anjos seminus,
chorando para que lhes mude a fralda…
Todas as manhãs o mesmo incómodo, todas as manhãs!

domingo, 29 de dezembro de 2013

ÁRVORE FELIZ


Uma quadra solta e outra entre parênteses.


A árvore esbraceja de contentamento,
em demanda d’água, seu alimento,
cresce, estende-se ao Sol e é feliz;
tronco, folhas, frutos: tudo da mesma raiz.

(O reflexo, o espelho é a pura verdade:
tu és quem realmente és , como outra metade.
Dentro ou fora és o mesmo, o teu igual.
Pena seres humano; penses bem e hajas mal.)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

UM LUGAR AO SUL


(Rafael Correia tem um programa na RDP com o nome Lugar ao Sul, um dos meus preferidos)

Onde é que eu fico? Nesta cor,
no chão segado que além vejo
ou deixo-me, com amor,
inundar  de céu e Alentejo?

Melhor é nascer de novo
e escolher este tom de azul
de céu, de mar, de povo;
um lugar habitado a sul.

domingo, 22 de dezembro de 2013

SOL E DÓ


Quando o sol arrefece,
a modos que entristece
em arrepiante glacê.
Apenas ri quando aquece
ou porque lhe apetece
sem saber bem porquê.

Este sol habituado
ao palco diurno do fado,
que nem por um dia se acoite,
se bem que triste ou magoado,
e mesmo se estiver cansado
nunca saiba o que é a noite.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O HOMEM QUE ESCREVIA VERSOS BRANCOS

Era um homem de saberes distintos. Moldava versos mentalmente durante algum tempo e depois escrevia-os como se os soubesse de cor. Fazia-os de memórias antigas. Todas as palavras desenhadas no papel tinham uma luz ardente. Às vezes sorria-lhes. Por mais singelas, rebuscadas ou buriladas, o homem parecia conhecê-las a todas como os seus próprios dedos, mesmo no emaranhado dos versos que guardava secretamente no cérebro até achar a oportunidade fantástica de lhes poder dar luz.
As palavras. Oh, as palavras, isso é dizer muito pouco sobre o que o homem derramava no papel… Eram astros, cometas incandescentes que a sua mão mais ágil ia traduzindo à medida que a memória ditava. Algumas riscava-as como se quisesse imitar a cauda dum asteróide, a outras acrescentava-lhes letras com luz ainda mais fogosas e a outras ainda dava-lhes uma espécie de vida humana: molhava entre os lábios cerrados e a língua a ponta aguçada do lápis e reescrevia-as ensopadas de saliva, como se suassem; como se chorassem; como se as benzesse daquela forma pagã e as soltasse para a vida efémera que é o momento da leitura.
Diariamente – por ser um período de tempo acessível à nossa compreensão – arriscava um poema; um fio de versos capazes de entontecer o mais empedernido dos seres. E fazia-o com a serenidade de sempre: o caudal das palavras percorria toda a folha de papel ao mesmo tempo que as lágrimas e todas as outras águas levavam à frente o jorro das suas inquietudes, até à conclusão apoteótica do poema.
As folhas de papel eram como que assoreadas de todo o pó e de todos os restos de escritos antecedentes e candidamente expostas à sua inspiração. Assim procedia para que a brancura dos versos não fosse poluída de matéria inconveniente.

Ao fim de cada jornada, a folha de papel continuava imaculada, com um novo poema branco e irrepetível derramado, mas em que apenas ele era capaz de ler todos aqueles versos lácteos e sublimes, que jamais alguém havia escrito. Ele e todas as crianças de olhos cristalinos como as suas folhas de papel.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

À LUZ DO TEMPO




De espera se faz o tempo
de um e de outro lado:
melhor, é esperar atento;
pior, é não ter esperado.

Há um momento dado
em que  pode o vento
delir, por ser soprado,
e já não chegamos a tempo.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

PRESO DE AMOR



Um corpo ou a própria sombra, o teu,
morno – que o descubra assim – por devoção
e me dissolva nele como se fosse eu,
tiquetaqueando em ambos o mesmo coração.

Que amor há, não sendo a emoção
de seres tu e, além de tudo o mais, se eu,
por ser em mim que explode tal paixão,
me divido, ao mesmo tempo, em juiz e réu.

Em causa própria, mau grado sentimento,
castigo e sofro o amor que me condena,
recuso e ao mesmo tempo dou assentimento

e, contrariado, acabo por aceitar a pena
de amor perpétuo em completo isolamento,
evadido de mim, fingindo a liberdade plena .

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ÁFRICA AFRICANA


Em Maio de 1975, Almeida Santos, Ministro português da Coordenação Interterritorial
afirmou ao pisar terra cabo-verdiana: “aqui respira-se Portugal”. Escrevi este poema em 10/6/1975


O Corvo poisou no barro seco
e a terra sorriu rasgada e funda.
É África africana, lábio grávido do oceano.

Meu país é longe
como a estrela do norte…

As árvores vergam-se, beijam o chão,
deixaram de suportar o vento
e o mar não pode valer a esta seca.

África tem sol no peito,
tem coração de boi: é forte
e o sangue corre nos braços lânguidos dos seu filhos.

A brisa fresca ao fim da tarde
é licor que adormece esta África
enorme e africana
e eu digo baixinho:
meu país é longe
como a estrela do norte…

Praia, 10/6/1975

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

À LUZ DAS LÁGRIMAS



Vou iluminar uma vela
de transparente solidão
e colocá-la na lapela,
bem junto ao coração.

Há-de flamejar cristalina
e inundar de alva discreta,
emulando a parafina
até que por fim se derreta.

Mas sem chama ardente,
como a luz anterior à mágoa,
não vá uma brisa displicente
secar-me as lágrimas de água.


domingo, 8 de dezembro de 2013

POEMA ECOLÓGICO DE NATAL


Um dia destes enfeito-me de azevinho,
bagas vermelhas em cima e aos pés caruma.
Vestido assim, (a ver se adivinho):
humana árvore de Natal ou coisa nenhuma.

De azeviche não, (ai a língua portuguesa!)
À maneira sóbria das damas antigas,
fazendo sinal da cruz quando se sentavam à mesa
e no decote exibiam  um atado de figas.

Visto-me assim de vermelhos frutos,
que da natureza sou  e de vermelhos gosto
e sem vaidade digo: são gostos mútuos;
de hipocrisias basta, é nisso que eu aposto.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ORAÇÃO PAGÃ


João Corvo insiste na publicação deste texto. Seja feita a sua vontade.


Santo Ovídeo, S. Cosme e Damião,
São Sebastião de santas mortes;
Santa Bárbara das trovoadas,
Santo Elói dos ourives,
São Cristóvão rodoviário,
Santo Onofre, Senhora dos Aflitos,
São Tiago de Fora e Senhora da Boa Hora,
São João das mil fontes,
Santo António de Lisboa
e São Miguel por orago,
São José carpinteiro,
Judas, Tiago, Betânia de Jesus Cristo,
São Marcos da minha rua,
São Valentim dos amores
e  São Jorge dos demónios,
São Pedro, São Paulo e São Bento,
São Macário dos mil lugares,
São Barnabé e S. Judas apóstolos,
São Lázaro ressuscitado:
demora ainda a caminhada
ou pensais em santificar-me?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

DEBAIXO DA PONTE


Em noite sem nuvens é vulgar
ter no céu por horizonte
o brilhante esplendor do luar.

Incomum, se queres que conte,
é a lua indigente pernoitar,
minguante, debaixo da ponte…

domingo, 1 de dezembro de 2013

O JOGO DA BOLA


Sem dinheiro para patins ou raquetes
e a imaginação pronta para inventar,
enchiam-se de trapos os velhos soquetes
e ala, temos bola, vamos jogar.

Se jogava a sério, se era bom de bola?
Não, nem um pouco, “não jogava nada”.
- Não é fintar e jogar bem o que consola;
é andar o dia inteiro com a meninada!

E foi assim que crescemos: de aventura
e fantasia. Esta era a ilusão precisa,
mais as zangas, as rixas… e a ternura
quando a maculada bola entrava na baliza…